sexta-feira, 29 de setembro de 2017

O POLO DA MEMÓRIA DA LUZ
Recordando a Arquitecta Maria João George

O "Polo da Memória" da nova Aldeia da Luz (a Igreja reconstruída, o cemitério trasladado, e o Museu da Luz), vencedor de um Prémio EUROPA NOSTRA em 2005
Foto Museu da Luz

Ao longo do nosso percurso profissional, vamo-nos cruzando e interagindo com muita gente, mais ou menos relacionada com a nossa actividade. É essencialmente por aí que nos vamos enriquecendo profissional e humanamente, completando a sempre limitada formação e experiência que trazemos da escolaridade que a vida e a sociedade nos proporcionou. Mas, natural e inevitavelmente, a maior parte dessas pessoas com quem vamos trabalhando, acaba por rapidamente se desvanecer da nossa capacidade de memória, pelo menos ao nível do consciente. Naturalmente que há muitas excepções, uma vezes ditadas pelas especiais circunstancias da interação (tenho ainda companheiros de trabalho a que me ligam laços profissionais desde os tempos da Faculdade), outras pela excepcional personalidade intelectual ou humana do interlocutor, outras ainda porque ligadas a acontecimentos ou projectos de especial significado nas nossas carreiras e que, por arrasto, acabam por ficar associadas aos mesmos. Há ainda aquelas situações que, coartadas abruptamente em resultado de trágicos eventos, acabam por adquirir um peso especial nas nossas lembranças.

Revista Expresso, 16/9/2017

Tudo isto vem a propósito da grande entrevista que o Dr.Francisco George deu ao EXPRESSO há poucas semanas, na antecipação da sua próxima aposentação como Director Geral de Saúde. Não sendo exemplo do que acima referi (nunca nos cruzámos pessoalmente e muito menos profissionalmente), não deixa de qualquer modo de ser alguém, que pela sua assídua presença televisiva, particularmente em momentos difíceis, acabou por se nos tornar familiar, até pela grande serenidade e clareza das suas intervenções que o tornaram uma figura de referencia, valorizando a função pública que tão dedicadamente serviu. Nessa longa e desassombrada entrevista, veio a certa altura à colação, a referencia às trágicas circunstancias do desaparecimento da sua esposa, arquitecta Maria João George e da filha, há pouco mais de uma década. E por aí, sim, se justifica a reflexão inicial deste "post". 

Capa da edição póstuma (2009) das crónicas que durante algum tempo MJG escreveu para o "Diário do Alentejo". O belo prefácio escrito por Francisco George pode ler-se aqui: http://www.franciscogeorge.pt/text/35501.html

Apesar da ligação de MJG ao (Baixo) Alentejo recuar bastante no tempo, apenas nos conhecemos em 1996 no âmbito do Projecto do Alqueva, a que ela já estava associada antes da minha ida para a EDIA. Trabalhávamos em áreas e locais diferentes mas, como se calcula, num empreendimento com as implicações territoriais, sociais, ambientais, culturais, etc..., como o Alqueva, não podia haver áreas estanques. Naturalmente, a componente patrimonial e arqueológica tinha de estar presente em muitas e diversificadas frentes, como na do processo de trasladação da Aldeia da Luz que MJG coordenou de forma exemplar. Para além do complexo projecto da Luz, acabaríamos por colaborar também noutras áreas e projectos -muito por culpa da visão do nosso chefe comum, Joaquim Marques Ferreira, primeiro como Administrador da área do Ambiente, mais tarde como Presidente do Conselho de Administração- sempre na perspectiva de tirar o máximo partido para as populações dos inegáveis sacrifícios decorrentes do empreendimento, construindo algo que fosse mais do que  energia ou água ao serviço de terceiros. Seria esta visão humanista e social do Empreendimento, o grande contributo da MJG para o projecto do Alqueva, e a grande lição que, pessoalmente, retirei do convívio profissional que mantivémos ao longo de uma década. Foi por isso que, já depois da minha saída da EDIA, ela viria a apoiar entusiasticamente o projecto que promovi no Castro dos Ratinhos (2004-2007), numa perspectiva de valorização ambiental e patrimonial na envolvente da Barragem. Foi também por essa razão que tanto se envolveu na recuperação do Monte e da  Herdade da Coitadinha, um projecto de compensação ambiental promovido pela EDIA, que permitiu transferir para a esfera pública um excepcional conjunto histórico (Castelo fronteiriço de Noudar), ambiental (Herdade com mais de 1000 ha) e etnográfico (o "monte" e todas as estruturas afins). Seria aliás, no dia inauguração das obras no Monte da Coitadinha, em que naturalmente esteve presente como recorda Francisco George, que se consumaria a tragédia que vitimou mãe e filha.

Recentemente, reencontrei um texto que então escrevi, ainda sob o choque da notícia que correu célere por todo o Alentejo e que julgo nunca ter antes divulgado. Aqui fica em memória da Maria João George.


Nova Aldeia da Luz_ um novo prémio

Afinal sempre existem coincidências e, por vezes, coincidências verdadeiramente trágicas. Ainda que a atribuição de prémios ao Museu da Luz comece a não ser novidade, a distinção que acaba de ser concedida ao conjunto denominado (não sei se pela própria Arquitecta Maria João George) de “Polo da Memória”, integrando o "Museu, a Igreja e o Cemitério da Nova Aldeia da Luz”, é talvez aquela que mais fica a dever à directa intervenção da malograda Arquitecta, enquanto coordenadora do projecto urbanístico da Nova Aldeia. Julgo que o Arquitecto Pedro Pacheco, autor do triplo projecto que na categoria de “Conservação do Património Arquitectónico" acaba de ser distinguido pela "Europa Nostra”, será o primeiro a reconhecer a importância decisiva do contributo da colega. Com efeito, e apesar da qualidade arquitectónica específica daquelas intervenções, em particular a do Museu já reconhecida internacionalmente, a atribuição de um prémio no domínio específico da “conservação do património” a um conjunto de obras novas, poderia parecer no mínimo incongruente. Obviamente que os peritos responsáveis pela acertada decisão tiveram em conta todo um conjunto de circunstâncias e atributos que a suportam e justificam plenamente. Os realojamentos colectivos de comunidades há muito enraizadas, são normalmente processos extremamente complexos, autênticos laboratórios sociais propiciadores das mais variadas análises e experiências mas de resultados nunca garantidos. O caso da Aldeia da Luz, sem antecedentes em Portugal - todos sabemos como se resolveu, por exemplo o (não) realojamento da população da aldeia comunitária de Vilarinho das Furnas também afundada por uma Barragem- não podia fugir à regra. Pelo contrário, o processo da Luz revelar-se-ia bem mais difícil de gerir graças a um novo factor, tipicamente contemporâneo, o permanente (e muitas vezes “em directo”) escrutínio dos “media", em particular das televisões, com todos os habituais e por vezes perniciosos efeitos de "feed-back”. Apesar disso foi possível, graças em grande parte às excepcionais qualidades da Maria João (invejável capacidade de diálogo, paciência quase infinita, fino sentido social, grande experiência técnica e, sobretudo, uma rara grandeza de alma associada a uma modéstia quase monástica) conseguir-se um resultado final hoje quase unanimemente reconhecido, a começar pelos primeiros interessados, como muito positivo, no âmbito urbanístico, arquitectónico ou social.  E de facto, com todas as correcções de percurso, nem sempre no sentido que social ou tecnicamente parecia mais justo ou adequado, com todas as posteriores alterações decorrentes da inevitável afirmação dos interesses e gostos individuais, aí está uma Nova Aldeia, capaz de retomar - talvez com uma força anímica inesperada - um percurso comunitário apenas perturbado em nome das necessidades de desenvolvimento do país. 

Dadas as circunstâncias, terá sido no conjunto dos equipamentos colectivos considerados da "memória” que, sem descurar a necessária interacção social sempre garantida peia intermediação da Maria João George, a capacidade criativa e inovadora da intervenção arquitectónica, mais se afirmaria. Com efeito, mesmo com algumas condicionantes duramente negociadas com a população- das exigências de construção de uma réplica da velha Igreja Matriz quinhentista, à integral “reposição” do cemitério- foi possível chegar ao magnífico objecto de arquitectura contemporânea que abriga e enquadra as memórias recentes ou remotas do território da velha aldeia, verdadeira ponte entre o passado, o presente e o futuro. O resultado final, hoje parecendo óbvio e linear na sua singeleza, é afinal o produto de um grande projecto colectivo, envolvendo população, autarcas, gestores, arquitectos, arqueólogos, etnólogos, museólogos, etc..., um projecto que tantas vezes parecia ir sucumbir perante dificuldades e incompreensões de toda a ordem, mas a que a Maria João George, na sua infinita paciência e sensibilidade, sabia dar de novo alento e recolocar no caminho certo. Provando afinal, antes das classificações da “Europa Nostra”, que o “património” não é feito apenas de relíquias do passado, mas é, antes de mais, uma permanente construção de um futuro colectivo melhor, com memória.
(23 de Março de 2006)


O obituário do Público




Notícia da atribuição ao Museu da Luz do Prémio EUROPA NOSTRA/2005

Agência LUSA
23 Mar, 2006, 16:06 | Cultura
O museu, cemitério e igreja da aldeia da Luz, Mourão (Évora), foi o único projecto português galardoado na edição dos prémios Europa Nostra/2005, em terceiro lugar numa das categorias, informou hoje a empresa gestora de Alqueva.
As intervenções arquitectónicas, segundo a Empresa de Desenvolvimento e Infra-estruturas de Alqueva (EDIA), foram promovidas no âmbito da construção da nova aldeia da Luz, visto que a antiga povoação ficou submersa pelas águas da albufeira.
O projecto referente ao museu, cemitério e igreja de Nossa Senhora da Luz foi um dos galardoados com o diploma de terceiro lugar, distribuídos pelas cinco categorias a concurso da edição de 2005 dos prémios Europa Nostra da União Europeia.
Estes prémios, criados em 2002 pela associação Europa Nostra (que reúne organizações não governamentais na área do património) e pela União Europeia, visam reconhecer as melhores práticas na conservação do património em território europeu.
O valor arquitectónico dos equipamentos da localidade alentejana foi reconhecido na categoria "Conservação do Património Arquitectónico", cujo primeiro prémio foi entregue aos banhos otomanos do século XVI de Omeriye (Chipre).
Nesta categoria, o concurso Europa Nostra distinguiu ainda seis projectos com segundos prémios e, além do caso da aldeia da Luz, outros dez com diplomas associados ao terceiro lugar.
As outras quatro categorias dizem respeito à "Conservação de Paisagens Culturais", "Conservação de Obras de Arte", "Estudos Científicos" e "Dedicação à Conservação do Património".
No total, nas cinco categorias, realça a EDIA, foram nomeados 214 projectos, analisados por peritos independentes e avaliados por um júri, que elegeu cinco primeiros classificados e atribuiu nove medalhas (segundo lugar) e 17 diplomas (terceiro lugar).
A entrega dos prémios referentes à edição de 2005 vai decorrer durante a cerimónia anual da European Heritage Awards, em Junho, marcada este ano para o Palácio Real de El Pardo, em Madrid (Espanha).
Os cerca de 400 habitantes da antiga aldeia da Luz começaram a ser transferidos para a nova povoação, construída de raiz, a cerca de dois quilómetros de distância, em Novembro de 2002.
A aldeia foi desmantelada em 2003, tendo todo o processo de transferência sido considerado um dos impactos sociais mais importantes decorrentes do avanço do empreendimento de Alqueva.
Na nova aldeia, além do museu, cemitério e duas igrejas (uma delas a de Nossa Senhora da Luz), foram construídos outros equipamentos colectivos como a junta de freguesia, centro de dia, sociedade recreativa, escola primária e jardim infantil.
Um pavilhão polivalente, praça de touros, tanque, unidade de saúde, campo de futebol, área de jogos tradicionais e campo descoberto, instalações de apoio ao mercado e jardim público foram outras das infra-estruturas, juntamente com 210 habitações, 11 comércios, 75 casões, 92 arrecadações, 33 alpendres e 82 cozinhas-de-lume.
O museu, por exemplo, foi inaugurado em 2003 e já foi objectivo de várias nomeações e prémios internacionais, procurando, através do seu espólio, perpetuar o passado histórico-arqueológico das terras submersas pela albufeira de Alqueva na freguesia da Luz







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