sexta-feira, 7 de julho de 2017

PATRIMÓNIO CULTURAL_ POLÍTICAS PÚBLICAS

A convite do Bloco de Esquerda, tive hoje (7 de Julho de 2017) oportunidade de intervir num colóquio-debate na Assembleia da República, sobre a actual situação da (desastrosa) gestão política do Património Cultural em Portugal. Por muito que nos custe, face aos progressos verificados noutras áreas da governação, a situação da Cultura em geral e, especificamente da salvaguarda do património cultural, não conheceu qualquer alteração significativa nos últimos tempos. Bem pelo contrário... Em jeito de balanço, aqui fica o meu contributo de hoje para o debate, tendo como pano de fundo uma fotografia da Anta Grande do Zambujeiro, obtida esta semana e que na sua situação de pré-colapso, ilustra simbolicamente a situação das políticas culturais em curso...

Luis Raposo, o deputado Jorge Campos (BE) e António Carlos Silva

"Pedem-me uma breve retrospectiva sobre políticas patrimoniais, especialmente focada no âmbito da salvaguarda do património arqueológico. De facto quando se atinge uma certa idade e se está à beira da aposentação, é inevitável que nos peçam “balanços” e se a nossa carreira profissional coincidiu (felizmente, como foi o meu caso) com o tempo da democracia, esse balanço pode e deve assumir a forma de uma análise crítica à nossa própria actuação, enquanto membros de uma sociedade que em última análise foi responsável, através do voto democrático, pela escolha das políticas que em cada momento enquadraram a intervenção do Estado em matéria de salvaguarda e valorização dos bens culturais que nos distinguem e que nos caracterizam enquanto povo.

 Obviamente nos anos 70 não partíamos do ZERO em matéria de património cultural, ainda que até ao 25 de Abril, no que se refere a estruturas com capacidade operacional, estas se resumissem à velha Direção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, enquadrada no poderoso Ministério das Obras Públicas. (Como exemplo do que se progrediu desde então, basta lembrar que os Palácios, Castelos ou Conventos então abertos ao público, dependiam dos directores das repartições de finanças mais próximas…)

Mas antes mesmo do Estado criar o primeiro organismo público para a salvaguarda do património cultural, (o que acontece apenas em 1980 com o IPPC) já um vasto movimento de associações de defesa do património cultural se pusera em marcha de Norte a Sul do país, (antecipando-se mesmo ao posterior movimento ecologista). A defesa do património histórico de cariz local ou regional, ganha contornos de afirmação identitária das comunidades, entrando por essa via na ordem das prioridades da política cultural, quer das autarquias locais quer do próprio Estado.

A arqueologia, claramente uma parente pobre no contexto da política patrimonial/nacionalista do Estado Novo, acabaria por ter nesse movimento muito focado nos valores locais, pouco valorizados até então, um papel destacado. A nível local, a defesa de qualquer ruína, podia assumir rapidamente um cariz de “defesa da honra da terra” em face do tradicional centralismo Estatal. Não admira pois que, ao criar-se o IPPC, a área da Arqueologia tenha sido a única que mereceu desde logo o reconhecimento político da necessidade de estruturas técnicas regionais. Seria aliás a partir de uma experiência local, o Campo Arqueológico de Braga, estrutura em parte dinamizada por uma Associação de defesa do património- a ASPA, das poucas que ainda se mantém activa- que se viria a institucionalizar o primeiro dos três Serviços Regionais de Arqueologia, entretanto instalados também em Coimbra e em Évora.

Assim, muito antes do IPPC se regionalizar no início dos anos 90 (quando se transforma em IPPAR), já a Arqueologia acumulara uma década de experiência de trabalho regional, enquadrando e apoiando financeiramente dezenas de pequenos e médios projectos de arqueologia, quer no âmbito da investigação (através dos Planos Nacionais de Trabalhos Arqueológicos) quer da conservação e valorização, quase sempre em colaboração com as autarquias. Paralelamente ia-se estruturando a rede de sítios e monumentos arqueológicos adquiridos pelo Estado desde os tempos do Fascismo mas que, pela sua localização e natureza haviam ficado fora de qualquer circuito de fruição pública (com uma única excepção no caso de Conimbriga).

Coube ao IPPAR herdar essa dinâmica, integrando os Serviços Regionais de Arqueologia nas novas estruturas regionais então criadas (Direcções Regionais do IPPAR). Mesmo perdendo autonomia de gestão, a Arqueologia viria a beneficiar da nova dinâmica introduzida pelo IPPAR, em particular na criação de com apoios do Fundo de Turismo, de estruturas de “acolhimento e interpretação” na rede de sítios e monumentos arqueológicos afectos ao Estado. Esta política viria a ter o seu apogeu, pelo menos no Sul do país, na concretização do programa dos “Itinerários arqueológicos do Alentejo e Algarve”, programa há muito descontinuado, por absoluta falta de meios humanos e pela ausência de qualquer estratégia de manutenção e conservação, quer das novas estruturas de interpretação instaladas, quer até, o que é particularmente grave, das estruturas arqueológicas que se pretendia valorizar turisticamente. (Como aparte refira-se que há sítios de primeira grandeza daquela antiga rede, como por exemplo as ruínas romanas de Miróbriga, Torre de Palma ou dos Pisões que não são objecto de qualquer intervenção significativa de conservação há quase duas décadas…) Vale nalguns casos, para que pelo menos se mantenham abertos ao público, a boa vontade das autarquias que vão suprindo informalmente as omissões da Administração Central (como são os casos das Ruínas de São Cucufate, do Castro da Cola ou da Cripta Arqueológica de Alcácer do Sal). Outros ainda, como sejam os povoados calcolíticos de Santa Vitória ou do Monte da Tumba ou a vila romana do Ameixial, estão praticamente ao abandono…

Graves erros na condução do processo de acompanhamento arqueológico das obras da Barragem do Côa, verificados em meados dos anos 90, vieram demonstrar a especificidade da problemática da salvaguarda do património arqueológico, um recurso cultural muito fragmentado e disseminado por todo o território, a exigir abordagens próprias. Tirando partido mais uma vez da dinâmica social (neste caso em torno do movimento de defesa das Gravuras do Côa), os arqueólogos (na sequência de outros processos de autonomização entretanto concretizados (Arquivos, Museus, Restauro etc..) conseguiriam em 1996 do Governo Guterres, a promessa de criação de um instituto próprio (o IPA) no âmbito do Ministério da Cultura. Apesar das normais dificuldades de arranque e das hesitações quanto ao modelo a seguir (ficaram fora do IPA áreas relevantes do Património Arqueológico, nomeadamente no campo da gestão e conservação dos sítios do Estado, que se mantiveram no IPPAR), o IPA iniciaria funções em 1997. No entanto duraria apenas uma década, pois seria uma das primeiras vítimas do tristemente célebre PRACE de 2007.  
Jorge Campos e Hélder Ferreira
Para além da integração de dezena e meia de então jovens arqueólogos nos quadros da Administração Pública- o que pelo menos evita que, face à próxima saída de cena da minha geração- não se regresse à penúria de arqueólogos anterior ao 25 de Abril, o que resta hoje da herança do IPA?

1. Antes de mais, um modelo de “arqueologia preventiva” relativamente eficaz e já interiorizado pelo mercado da construção civil e obras públicas, baseado no princípio do “poluidor/pagador”.  Apesar de inegáveis aspectos positivos (uma vez que tem proporcionado importantes descobertas sobretudo a nível das cidades históricas ou das grandes obras públicas) este modelo tem também consequências perversas, que não podem ser ignoradas:

a)      Legitima a total desresponsabilização do Estado (Ministério da Cultura) no financiamento da tradicional Arqueologia de campo de cariz não empresarial;

b)      Sobrevaloriza a Arqueologia Empresarial ou comercial sem a correspondente capacidade para a sua regulação e fiscalização, com consequências óbvias no que respeita à sua qualidade técnico- científica;

c)      Falha nas respostas aos problemas decorrentes da ausência de divulgação científica dos resultados da arqueologia preventiva, da acumulação ou dispersão de espólios não tratados ou ainda da salvaguarda de importantes estruturas arqueológicas não abrangidas por processos de Avaliação de Impactes… (caso das transformações agrícolas no Alentejo ou das processos de florestação intensiva…).

Aliás, a falta de soluções para estas e outras questões, tem levantado reservas compreensíveis sobre a real utilidade social desta  tão intensa como desregulada Arqueologia feita “a metro”… numa lógica exclusiva de “mercado”

              2. Outra herança positiva do IPA, é naturalmente, a criação do Parque Arqueológico do Vale do Côa (posteriormente enriquecido com o respectivo Museu), pesem embora as indefinições e dificuldades presentes de gestão e salvaguarda deste património classificado pela UNESCO, dificuldades recentemente muito mediatizadas face aos inqualificáveis actos de vandalismo ali verificados.

            3. A criação de estruturas operacionais de Arqueologia Subaquática  é a terceira herança do IPA que aqui gostaria de destacar, até pela eminência do seu desbarato. Esta área tão específica quanto relevante no quadro da tradição marítima portuguesa, é uma conquista absoluta do pós 25 de Abril, que devemos à visão e à dinâmica do arqueólogo Francisco Alves, uma figura chave da arqueologia portuguesa no último quartel do Século XX. Infelizmente, como é sabido, a continuidade desta estrutura não foi minimamente assegurada no processo de extinção do IPA. Se a desmaterialização daquele instituto, através da sua integração no IGESPAR se pode em última análise aceitar no quadro das reestruturações impostas pela crise financeira, já o processo de desmantelamento das estruturas da Arqueologia Subaquática, sem alternativa sustentável, pode ser considerada verdadeira gestão danosa, como finalmente se comprova face à verba astronómica gasta pelo aluguer de espaços no MARLE, verba que cobriria certamente muitas das necessidades de gestão corrente do património arqueológico nacional. Ainda por cima, todo o processo ganha contornos algo absurdos quando se acaba por reconhecer que o mesmo foi condicionado por políticas consideradas estranhas aos interesses do próprio Ministério da Cultura e que culminaram na criação de mais um elefante branco centralista (novo Museu dos Coches) consumindo meios de funcionamento que seria necessário redistribuir de forma mais equitativa pelo país…

            Neste contexto, podemos afirmar que, em face da relativa juventude e consequente debilidade das suas estruturas, a componente arqueológica da área do património cultural, viria a ser uma das mais afectadas pela reestruturação do Estado iniciada com o processo do PRACE em 2007, quando o IPA, tal como o que restava da DGEMN (um serviço que vinha já sendo esvaziado das suas competências técnicas) foram integrados no IGESPAR, o organismo sucedâneo do IPPAR.
Agravando a situação, o novo IGESPAR seria amputado das antigas Direcções Regionais do IPPAR, estruturas que asseguravam um algum equilíbrio distributivo de recursos e uma certa unidade estratégica à política patrimonial. Aqueles estruturas que atravessavam também já crescentes carências técnicas, são por sua vez integradas em novas Direcções Regionais da Cultura. Passam a partilhar e articular competências e atribuições patrimoniais com o IGESPAR lisboeta, mas não estão integradas hierarquicamente com aquele, o que gera resultados desastrosos: circuitos burocrático-administrativos tão despropositados como inúteis; políticas, estratégias e meios de intervenção desarticulados e cada vez mais desequilibrados.

       Infelizmente, a nova reestruturação entretanto verificada em 2012 (na qual se consumou a funesta extinção do Instituto dos Museus e da Conservação) serviria apenas para confirmar e aprofundar a divisão patrimonial do país, institucionalizando duas “categorias”: uma centralizada, que até recupera a designação pré-IPPC (Direcção Geral do Património Cultural) e que assume a gestão do património de “primeira categoria” (os Museus Nacionais, os grandes Palácios ainda não privatizados, os principais monumentos, nomeadamente os considerados Património da Humanidade) e uma outra “categoria”, certamente de “segunda”, que deixa para as Direções Regionais de Cultura o património restante. (a simples análise das receitas anuais gerada pelos diversos monumentos poderá dar uma ideia aproximada do que estamos a falar…)

        Desgraçadamente e quanto a reformas, parece que ainda não ficamos por aqui, já que culminando um dos mais negros períodos de desinvestimento da história patrimonial das últimas décadas, se anunciam já novas mudanças, e aparentemente sempre na mesma lógica de “fuga para a frente.”
 Fala-se agora em dois objectivos:

- retirar da alçada da Cultura as competências e atribuições técnico-administrativas no âmbito da salvaguarda do património cultural (ou seja a competência para avaliar o impacto patrimonial de projectos e obras sobre o património classificado e o património arqueológico) passando-as para uma repartição “cultural” das CCDR (não diria que é colocar a raposa no galinheiro…é mais mudar as galinhas para o covil…)

- transferir para as autarquias a responsabilidade da conservação e gestão dos imóveis culturais do Estado menos “interessantes” (castelos, muralhas, sítios arqueológicos, etc..), o que, se em muitos casos será apenas a formalização de uma situação de facto, noutros poderá representar um presente envenenado. Basta recordar que a generalidade deste património não vê um cêntimo de investimento na sua manutenção há mais de uma década (falo sobretudo pelo Alentejo); e não estão apenas em causa necessidades prementes de conservação ou de restauro dos bens culturais; poderá nalgumas situações estar em causa a própria segurança das pessoas que vivem ou circulam na proximidade destes monumentos. (Poderia aqui referir alguns exemplos mas não quero ser acusado de alarmismo).

Pese embora a magnitude da problemática actual da gestão do património cultural afecto ao Estado (tanto o de primeira como o de segunda categoria), não gostaria de terminar esta minha intervenção sem aqui lembrar que, apesar do abandono e despovoamento de um interior agonizante, subsistem ainda por todo o território português elementos patrimoniais que são parte integrante da matriz básica das nossas paisagens culturais. A salvaguarda ou valorização destes bens patrimoniais (mesmo se classificados) está hoje fora do alcance da perniciosa lógica administrativa e financeira que nos foi imposta do exterior e que canaliza para os chamados grandes projectos, todos os recursos disponíveis (quer os do Estado quer os das próprias autarquias), num círculo vicioso que exclui sempre os mais débeis da mesa do orçamento.

Falo com experiência própria pois resido há muitos anos numa zona rural e procuro participar na sua vida cívica. Por coincidência, a zona em causa, um vasto território entre Évora e Montemor mas com poucas centenas de habitantes, apresenta uma riqueza patrimonial invulgar (entre ela 5 monumentos nacionais e 8 imóveis de interesse público). E não se trata apenas da proverbial riqueza megalítica da região. De facto, este território, abarcando a União de Freguesias de Valverde e Guadalupe, apresenta também ruínas romanas, capelas rurais renascentistas, pontes históricas, moinhos e azenhas e até um Convento e parte de um Paço Real.

No seu conjunto, o historial recente e a situação concreta deste património, acaba por ser um reflexo paradigmático, da evolução das políticas patrimoniais das últimas décadas. A investigação arqueológica realizada nos Cromeleques dos Almendres, Portela de Mogos e Vale Maria do Meio, aconteceu no contexto da dinâmica criada pelo Serviço Regional de Arqueologia do Sul e posteriormente continuada pelo IPPAR em colaboração com a autarquia. Mas há mais de uma década que estes monumentos, apesar de muito visitados e usados como marca “turística”, não são objecto de qualquer intervenção significativa, estando praticamente entregues à sua sorte, (facto recentemente denunciado pela Assembleia de Freguesia junto de todos os grupos parlamentares desta casa e que, faça-se justiça, só obteve eco junto do Bloco de Esquerda). Foi naquele mesmo ambiente das décadas de 80 e 90 que se desenvolveram também as importantes escavações das Ruínas Romanas da Tourega ou das Antas do Vale Rodrigo, cuja presente situação é idêntica à dos Cromeleques. Infelizmente, os gravíssimos problemas de conservação da Anta Grande do Zambujeiro, apesar de abordados ainda no tempo do Serviço Regional de Arqueologia, não tiveram ainda qualquer solução. Este Monumento Nacional, fantástico testemunho da mais antiga arquitectura europeia, está hoje praticamente à beira do colapso total, declarando-se o Estado incompetente para o impedir. Pelo menos é o que se consegue depreender da resposta “redonda” recentemente dada pelo Ministro da Cultura, a uma pergunta nesse sentido, feita pelo Deputado Jorge Campos. O argumento é que a Administração nada pode fazer porque estamos perante monumentos localizados em “propriedade privada”… E de facto, é verdade, todo este vasto património de Guadalupe e Valverde é nacional mas está em terrenos privados… Uma contradição hoje assumida por quem de direito como insanável mas que no passado, com outras políticas, não terá impedido a sua investigação e até, nalguns casos a sua valorização…

 Há, no entanto, uma excepção, a chamada Quinta do Paço e respectiva Tapada, incluindo o Conventinho do Bom Jesus de Valverde. O conjunto conhecido como Mitra, está classificado, pertence ao Estado e é gerido pela Universidade de Évora que o herdou da Antiga Escola Agrícola, instituição muito ligada à povoação de Valverde. Dir-se-ia que estamos perante a excepção que permitiria à administração pública redimir-se da sua demissão face à salvaguarda e gestão dos restantes recursos histórico-arqueológicos deste território. Mas é puro engano…

Com a conivência (ou impotência) da Universidade e o lavar de mãos da Cultura, o Ministério das Finanças e a Secretaria de Estado Turismo, preparam-se para (através do Programa REVIVE), sem sequer ouvir ou consultar as populações locais sobre um assunto que lhes é particularmente caro, entregar o monumento à gestão privada para instalação de mais um “hotel de charme”.

Para terminar, puxando de novo a temática do património para a preocupante situação do território e das paisagens rurais, gostaria de aqui enunciar um conjunto de premissas que, parecendo óbvias, são muitas vezes esquecidas:
-  não há qualquer hipótese de conservação das nossas paisagens culturais (por mais interessantes e valiosos que sejam os recursos em causa) sem pessoas;
- não haverá qualquer hipótese de sucesso de projectos de valorização patrimonial local, se estes não estiverem apoiados num mínimo de dinâmica social;
- não haverá dinâmica social que resista à falta de adequado enquadramento técnico ou a um mínimo de apoio financeiro…


Obviamente, a resposta a estas e a muitas outras questões que aqui levantei, apenas será possível com políticas culturais e patrimoniais muito diversas das que, infelizmente, se anunciam."

Assembleia da República, Auditório António Almeida Santos, 7 de Julho de 2017

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