ANTÓNIO MARTINHO BAPTISTA
Na plenitude do Tempo
A primeira aula prática de Arqueologia de que guardo memória, provavelmente já em momento bem adiantado do Outono de 1970 (as aulas começavam sempre tarde na Universidade), aconteceu no primeiro andar do Museu Nacional de Arqueologia (e Etnologia, como então se chamava). Tratava-se de um amplo espaço, inacabado e sem qualquer divisória interior, uma espécie de sótão desenvolvendo-se a todo o comprimento da ala do Mosteiro dos Jerónimos, fronteira ao Jardim do Império. Ao longo desse imenso "sótão", alinhavam-se centenas de vitrines ordenadas por ordem cronológica e pejadas de materiais arqueológicos, organizados por grupos tipológicos (pedras, cerâmicas, metais...) . Era junto a uma dessas vitrines, localizada no topo nascente do "corredor", que se aglomeravam nesse dia os estudantes do 1º ano do curso de História que ali iriam ter com o Professor Luis de Matos (então assistente de Fernando d'Almeida que acumulava a Cátedra de Arqueologia e a Direcção do Museu), a sua primeira aula de Pré-história, ou mais especificamente, a crer nos calhaus acumulados na vitrine, a primeira sobre Paleolítico. Quando cheguei a lição já começara pelo que ao aproximar-me do grupo, com alguma ansiedade pois não conhecia ainda praticamente nenhum colega, reparei em particular num dos presentes. A sua farta cabeleira dava nas vistas, ainda que fosse um sinal dos tempos, mas era o blusão amarelo torrado que o destacava do cinzentismo geral do grupo.
Foi este o meu primeiro contacto com António Martinho Baptista, um dos colegas da Universidade com quem, a par do Vítor Serrão, mais privei ao longo do curso, pelo menos até concluirmos o bacharelato em 1973 e começarmos todos a definir áreas de interesse profissional que acabariam por nos dispersar, ainda que com sucessivos reencontros e cruzamento de projectos ao longo das nossas carreiras. Naturalmente, teria um peso muito significativo na estreita relação então criada entre nós e que envolvia outros colegas do mesmo curso (como o Francisco Sande Lemos, a Teresa Marques, o Jorge Pinho Monteiro ou a Susana Lopes, por exemplo), o desencadear do processo de salvamento da arte rupestre do Vale do Tejo, circunstancia que nos arrastaria a todos, mesmo os que não se interessavam tanto pela Arqueologia, para Vila Velha de Ródão durante os largos períodos que duravam as sucessivas campanhas de campo. E seria no Ródão que o alentejano António Martinho Baptista (conhecido pelo "Barão de Alter", entre os amigos do Instituto Superior Técnico, cuja cantina frequentava porque o seu quarto de estudante ficava para as bandas da Praça do Chile) começaria a longa caminhada de estudo da arte rupestre portuguesa, os tais 45 anos de "Estudos em Arqueologia Rupestre, do Tejo ao Côa, passando pelas montanhas do Noroeste" (e pelo Vale do Guadiana, poder-se-ia também acrescentar...) de que fala o cartaz da conferencia que assinalou na semana passada o seu regresso a Braga após a recente aposentação do lugar de Director do Museu do Côa.
Numa altura em que aguardo também a aposentação e em que, por ordem natural das coisas, é toda uma geração de arqueólogos que chega ao final das respectivas carreiras (uma geração que julgo especialmente bafejada pela sorte dos tempos mas que, como maior ou menor sucesso, foi capaz de cavalgar a onda de oportunidades proporcionada pelas transformações políticas e sociais entretanto verificadas), não queria deixar de assinalar neste espaço de memórias, os 47 anos de amizade com o António, a quem me ligam tantos e tantos laços de ordem pessoal ou profissional. Destaco em particular a pronta resposta ao apelo que em nome da EDIA lhe dirigi no final do ano 2000, quando na sequencia da descoberta de arte rupestre no Guadiana espanhol, se identificaram os primeiros núcleos em território do Alandroal e cujo reconhecimento seria obrigatório promover sem demoras. Com enorme sacrifício pessoal, dadas as condições do terreno e as circunstancias da descoberta, AMB envolveu-se directamente com a sua experimentada equipa do extinto Centro Nacional de Arte Rupestre, no projecto de registo arqueológico dos múltiplos painéis gravados então descobertos em cotas de inundação e cujos resultados seriam editados em 2013 (ver aqui). Já depois dessa data e embora em condições menos dramáticas, não deixou de aparecer pelo Escoural (2009), contribuindo com o seu conhecimento e experiência quando, nos trabalhos de renovação das estruturas de visita da conhecida Gruta paleolítica, ali encontrámos vestígios rupestres inéditos. Levaria mesmo a sua amizade ao ponto de aceitar escrever todo um capítulo de reenquadramento da arte rupestre do Escoural, face às descobertas entretanto verificadas nas últimas décadas, no livro que preparei por ocasião da reabertura da Gruta ao público (Escoural, uma Gruta Pré-histórica no Alentejo, 2011).
Impossibilitado pela distância de participar no encontro em boa hora promovido pelo Museu D.Diogo de Sousa (há ali mão da minha amiga Isabel Silva, a actual directora e de algum modo companheira mais jovem das andanças desta geração de arqueólogos) as fotos que se seguem e que recuperei nas mais variadas fontes representam a minha simples homenagem ao António e ao que ele representa para mim e para tantos outros colegas e amigos, como pessoa e arqueólogo.
Em tempo e a propósito: http://www.noticiasmagazine.pt/2017/antonio-martinho-baptista/
Fotos de grupo na Pensão Castelo do Porto do Tejo (Ròdão) a que carinhosamente chamávamos "pensão da velha", perante a forte personalidade da proprietária, tia do nosso (posterior) companheiro de trabalho arqueológico, o Eng, Luis Caninas. As fotos deverão datar de 1972 e o AMB aparece sempre com o seu inconfundível boné... |
A caminho de mais uma jornada de trabalho na arte rupestre do Vale do Tejo (1972?).António Martinho Baptista, ao centro e Helena Afonso, à direita. Em primeiro plano, a estudante americana Diana, ao tempo aluna na Faculdade de Letras de Lisboa e que por essa via participaria numa das campanhas do Ródão...fazendo alguns estragos afectivos.
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AMB, Luis Raposo, Teresa Marques e ACS em primeiro plano, em pleno vale do Tejo pré Barragem do Fratel, num enquadramento paradigmático. |
Em 1975, em pleno Verão Quente, os alunos do curso de 1970/71, já então misturados com colegas de cursos mais recentes, participariam numa última grande actividade curricular em comum, promovida por José Morais Arnaud, à época assistente convidado da Faculdade de Letras (por decisão dos alunos) e actual presidente da Associação dos Arqueólogos Portugueses. Tratou-se do Campo Arqueológico do Penedo do Lexim, complemento prático de uma das cadeiras lecionada pelo Zé Arnaud. O AMB só na foto do meio (à direita) não exibe o seu característico boné. http://pedrastalhas.blogspot.pt/2015/11/no-penedo-do-lexim-ha-40-anos-o-link.html
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AMB exemplifica no Guadiana a técnica de moldagem, com recurso ao "silicone" mais fiável do que o "latex". |
Guadiana, 2001- AMB acompanha o Presidente do CA da EDIA (Adérito Serrão) numa visita aos trabalhos de campo |
AMB enfrentando o "circo mediático" em torno das descobertas da arte rupestre no Alqueva |
A monografia publicada por AMB e André Santos, sobre a arte rupestre do Guadiana português. |
AMB fotografando o painel de pinturas, dito do "baldaquino", na Gruta do Escoural (2009) |
António Martinho Baptista e António Carlos Silva, na Gruta do Escoural em 2009 (foto de André Santos) |
Em devido tempo (26/7/2017), e com a devida vénia, aqui transcrevo o texto que o Luis Raposo acaba de divulgar no seu Facebook sobre o AMB:
Ainda acerca do António Martinho Baptista: a minha evocação no livro que lhe foi dedicado.
Recordação do que fica, depois de (quase) tudo esquecido
Há meia dúzia de anos, quando assinalámos quatro décadas passadas sobre a descoberta da arte rupestre do vale do Tejo, referi-me a esse binómio de espaço e tempo como “o eixo vertebrador do meu mundo” (em Açafa, nº 4, 2011, um volume imperdível, que pode ser obtido em linha: http://www.altotejo.org/acafa/acafa_n4.html). Embora subentendido, porque, para citar Marc Bloch, por sermos historiadores amamos a vida, faltou talvez nessa ocasião ser então mais enfático para com os companheiros que povoaram aquele meu e nosso mundo, a chamada “geração do Tejo”, na expressão feliz de um de nós, o António Carlos Silva.
Ora, sem desprimor de nenhum outro, permitam-me neste momento que evoque dois, entre todos: o Jorge Pinho Monteiro, com quem especialmente aprendi o gosto pela teoria e o rigor analítico como chaves de entendimento do que nos rodeia; e o António Martinho Baptista, que sobretudo me ensinou a viver, com alegria de vida.
Dificilmente encontraremos em alguém a singular combinação entre teoria e prática que o António protagonizava. Ele era certamente o mais vivido de todos nós, o que melhor juntava, na sua e nossa juventude de então, o conhecimento do campo com o da cidade. O que tanto podia construir sedutoras teses estruturalistas, sobre profano ou sagrado, como logo depois as desfazer com a sabedoria dos simples, muitas vezes resumida em observações desarmantes. Isto sem esquecer o hábito alentejano das alcunhas e dos ditos acutilantes. Desde muito cedo, no melhor tempo da minha vida, devo ao António algo que ainda transporto em mim: não me levar, nem levar os outros, demasiado a sério. Ser relativo em tudo da vida. E guardar em relação a pessoas e situações as distâncias críticas de um Zé Povinho.
Coube-me na rifa, em Ródão, integrar a equipa de moldagem, dirigida pelo António. Não foi preciso muito tempo para que recebesse a alcunha do “senhor bolha”, porque paciência não é um dos meus fortes, para mais debaixo das tórridas temperaturas rodanenses, e na pressa de aplicação da borracha líquida (latex) ia deixando bolhas entre cada camada (o mestre, esse tinha toda a paciência, como se vê na foto junta…). Claro que teria preferido ser “bacaninha”, mas essa alcunha já estava tomada. E a verdade é que era justa a observação.
Ao longo dos tempos, fomo-nos vendo de forma cada vez mais esparsa. Mas fui sempre encontrando o António nos mesmos combates, no mesmo lado das barricadas. Aliás, sexagenários ou até septuagenários que somos hoje, podemos dizer que a nossa geração, a “geração do Tejo”, continua toda do mesmo lado, do lado bom da vida. E permanecemos além disso amigos. Muito amigos, mesmo.
Luís Raposo
Ora, sem desprimor de nenhum outro, permitam-me neste momento que evoque dois, entre todos: o Jorge Pinho Monteiro, com quem especialmente aprendi o gosto pela teoria e o rigor analítico como chaves de entendimento do que nos rodeia; e o António Martinho Baptista, que sobretudo me ensinou a viver, com alegria de vida.
Dificilmente encontraremos em alguém a singular combinação entre teoria e prática que o António protagonizava. Ele era certamente o mais vivido de todos nós, o que melhor juntava, na sua e nossa juventude de então, o conhecimento do campo com o da cidade. O que tanto podia construir sedutoras teses estruturalistas, sobre profano ou sagrado, como logo depois as desfazer com a sabedoria dos simples, muitas vezes resumida em observações desarmantes. Isto sem esquecer o hábito alentejano das alcunhas e dos ditos acutilantes. Desde muito cedo, no melhor tempo da minha vida, devo ao António algo que ainda transporto em mim: não me levar, nem levar os outros, demasiado a sério. Ser relativo em tudo da vida. E guardar em relação a pessoas e situações as distâncias críticas de um Zé Povinho.
Coube-me na rifa, em Ródão, integrar a equipa de moldagem, dirigida pelo António. Não foi preciso muito tempo para que recebesse a alcunha do “senhor bolha”, porque paciência não é um dos meus fortes, para mais debaixo das tórridas temperaturas rodanenses, e na pressa de aplicação da borracha líquida (latex) ia deixando bolhas entre cada camada (o mestre, esse tinha toda a paciência, como se vê na foto junta…). Claro que teria preferido ser “bacaninha”, mas essa alcunha já estava tomada. E a verdade é que era justa a observação.
Ao longo dos tempos, fomo-nos vendo de forma cada vez mais esparsa. Mas fui sempre encontrando o António nos mesmos combates, no mesmo lado das barricadas. Aliás, sexagenários ou até septuagenários que somos hoje, podemos dizer que a nossa geração, a “geração do Tejo”, continua toda do mesmo lado, do lado bom da vida. E permanecemos além disso amigos. Muito amigos, mesmo.
Luís Raposo