António Cavaleiro Paixão
Recordando um amigo e um colega
Está finalmente editado e pronto a ser apresentado mais um volume da já centenária revista "O Arqueólogo Português", fundada por Leite de Vasconcelos no início do século passado. Como habitualmente, sem que grande mal venha daí ao mundo, o número em causa surge com um atraso significativo, já que respeita aos anos de 2014-2015. Tal circunstancia explica que também apenas agora se cumpra uma tradição da mais importante revista arqueológica nacional, assinalando-se na presente edição, o desaparecimento de um arqueólogo com especial ligação ao Museu Nacional de Arqueologia, a entidade desde sempre responsável pela edição. Refiro-me ao arqueólogo António Cavaleiro Paixão, falecido em 2014, e cuja memória é assinalada nesta edição, através da publicação de um texto que, por convite do actual Director, António Carvalho, tive a honra de preparar. A leitura do mesmo, que aqui reproduzo, enriquecido por algumas fotos pouco conhecidas, permitirá compreender porque é que aceitei, de alma e coração, a tarefa que me foi proposta.
“IN MEMORIAM”
António Cavaleiro
Paixão
(23 de Abril de 1939-29 de Maio de 2014)
(23 de Abril de 1939-29 de Maio de 2014)
António Manuel
Cavaleiro Paixão, arqueólogo falecido em Maio de 2014 após prolongada
doença, foi uma figura determinante no contexto do desenvolvimento da
arqueologia pública em Portugal no último quartel do Século XX. Com efeito
quando em 1980, após a criação do Instituto Português do Património Cultural
(IPPC), foi finalmente possível começar a erguer estruturas
técnico-administrativas capazes de responderem aos desafios da salvaguarda e
valorização do património arqueológico no território português, a geração que
se abalançou nessa tarefa - e da qual me orgulho de fazer parte- não partia do
zero. Já então no seio da Administração Pública, quer em gabinete quer no terreno,
um par de arqueólogos ainda que enfrentando imensas dificuldades, procurava há
algum tempo fazer a ponte entre o passado anquilosado e inoperante das
estruturas consultivas da extinta Junta Nacional da Educação e as crescentes
ameaças que a urgência da recuperação de meio século de subdesenvolvimento
colocava à defesa dos vestígios arqueológicos. Entre eles destacava-se já o
António Cavaleiro Paixão. Pertencia a uma geração etária um pouco mais velha,
mas foi contemporâneo na Faculdade de alguns dos arqueólogos que então se
destacaram no processo de transformação da Arqueologia portuguesa e que, como
ele, tinham encontrado acolhimento e apoio no Museu Nacional de Arqueologia e
Etnologia ao tempo do Director Fernando de Almeida. Esta circunstância,
associada a uma actualizada formação e a um invulgar currículo de campo, habilitaram-no
no momento certo, a ser um precioso interlocutor entre a Administração e as
novas gerações de arqueólogos. Para tal contribuíram as suas reconhecidas qualidades
humanas de afabilidade, modéstia e bom humor que faziam de si, pese embora a
diferença de idade ou de estatuto profissional, um colega sempre pronto a
partilhar experiências ou a responder a novos desafios, sem suspeições estéreis
ou segundas intenções. Reforçavam aquelas características um elevado sentido de
serviço público, que se traduziriam ao longo da sua carreira quer na actividade
como docente de Arqueologia quer nas funções que assumiu nas organizações
científicas a que pertenceu, com destaque para a Associação de Arqueólogos
Portugueses, de que foi vice-presidente entre 1979 e 1987 ou para a Sociedade
de Geografia de Lisboa, onde dirigiu até 1990 a respectiva secção de Arqueologia.
Tive o prazer de ser seu colega no IPPC durante quase uma década e a honra de
ter sido seu superior hierárquico durante algum tempo, enquanto director do Departamento de Arqueologia, pelo que foi com sentido de dever e quase como
obrigação moral, que aceitei o convite do Director do MNA para redigir este mais
que justificado “in memoriam” esperando que o mesmo contribua para consolidar a
ligação do seu nome a esta prestigiada revista e ao Museu onde, como
colaborador, iniciou há meio século a sua carreira de arqueólogo.
António Cavaleiro Paixão nasceu
em Lisboa em 23 de Abril de 1939, filho de um funcionário público oriundo de
Torres Novas, Manuel Alexandre Paixão e de mãe lisboeta, Dália da Luz
Cavaleiro. O seu interesse pela arqueologia, conforme o próprio refere em nota
curricular constante do seu processo de funcionário público, remonta a 1959
altura a partir da qual participa com regularidade nas actividades do
departamento de paleoetnologia da Sociedade Portuguesa de Espeleologia (SPE),
dirigido por Carl Harpsöe. Sob a direcção deste arqueólogo e espeleólogo amador,
de origem dinamarquesa mas há muito radicado em Portugal, António Cavaleiro Paixão
irá ter as primeiras experiências práticas de escavação, nomeadamente na Lorga
de Dine (Vinhais, Bragança) em 1964 e na Gruta de Ibn-Ammar (Mexilhoeira, Lagoa)
em 1965. Como colaborador da SPE participou também nos trabalhos de
reconhecimento subsequentes à descoberta da Gruta do Escoural (1963), nos quais
Carl Harpsöe teve um papel importante no apoio logístico e técnico a Farinha
dos Santos na sua deslocação ao Escoural em nome do Museu Nacional de
Arqueologia e Etnologia e a pedido do Prof. Manuel Heleno. Para além de ter
participado no primeiro levantamento topográfico da gruta, realizado em 1964,
Cavaleiro Paixão teve oportunidade de em Janeiro de 1965, colaborar nos trabalhos
de levantamento da arte rupestre realizados no Escoural pelo conhecido
arqueólogo francês André Glory, aquando da sua visita a Portugal no contexto da
controvérsia sobre a cronologia dos vestígios rupestres entretanto ali
identificados por Farinha dos Santos. Pessoalmente, estou em crer que a
oportunidade de colaborar directamente com um especialista de renome
internacional como Glory, então a estudar a famosa Gruta de Lascaux, poderá ter
sido determinante na vocação arqueológica de António Cavaleiro Paixão.
António Cavaleiro Paixão, com André Glory, durante o reconhecimento efectuado pelo conhecido arqueólogo francês na Gruta do Escoural, em Janeiro de 1965 |
De facto, após uma curta passagem
pela vizinha Faculdade de Direito, António Cavaleiro Paixão inscrevera-se em
1963 na Licenciatura em História da Faculdade de Letras da Universidade de
Lisboa, na época e ainda por muitos anos, a única via possível de se obter em
Portugal uma formação superior abrangendo disciplinas arqueológicas. Dadas as naturais
limitações teóricas e práticas do curso, face à sua amplitude temática, Paixão procurava
no trabalho voluntário de campo, o indispensável complemento formativo. Assim,
em 1966, talvez pela mão de Fernando de Almeida que patrocinava o projecto na
Junta Nacional de Educação, teve oportunidade de integrar o grupo de estudantes
portugueses que participou nas grandes escavações do Castro do Zambujal (Torres
Vedras) promovidas pela delegação madrilena do Instituto Arqueológico Alemão,
sob a direção científica de Hermanfrid Schubart e Edward Sangmeister, da
Universidade de Friburgo. Quer pelo elevado nível metodológico da escola alemã,
quer pelo número e interesse dos participantes, a escavação do Castro do
Zambujal ficou conhecida como a escola prática da moderna arqueologia
pré-histórica portuguesa. Ainda na sequência desta experiência e a convite dos
arqueólogos alemães, Cavaleiro Paixão teve também oportunidade, de estagiar algum
tempo nas escavações da necrópole fenícia de Toscanos (Málaga), o que lhe
permitiu um primeiro contacto com uma realidade arqueológica a que pouco tempo
depois, por sugestão do próprio Fernando de Almeida, se dedicaria a fundo em
Alcácer do Sal. Com efeito, o interesse, gosto e disponibilidade da parte do
aluno Cavaleiro Paixão por esta disciplina, então profissionalmente muito pouco
atrativa, terá chamado a atenção daquele professor que acabara de substituir
Manuel Heleno na Cátedra de Letras e na direção do Museu Nacional de
Arqueologia e Etnologia (1966). De personalidade bem distinta do antecessor, o
novo diretor irá ver nos mais jovens, nomeadamente nos seus alunos, a
possibilidade de romper com a imagem de imobilismo e secretismo que o Museu de
Belém granjeara com as célebres “reservas”, inacessíveis durante décadas. É
esta nova atitude de abertura e confiança da parte do mestre, conjugada com as
qualidades e a experiência efectiva de campo já demonstradas pelo aluno, que explicam
a extraordinária proposta de tema de dissertação sugerida a Cavaleiro Paixão: o
estudo arqueológico da Necrópole Proto-histórica do Senhor dos Mártires em
Alcácer, escavada meio século antes por Virgílio Correia por conta do Museu,
mas cujos materiais apesar da sua enorme importância científica, se mantinham
inéditos. Para qualquer pessoa minimamente informada sobre a realidade
arqueológica portuguesa da época, aquela proposta só pode ser entendida como
demonstração de uma grande confiança neste aluno e nas suas potencialidades, e como aviso público de que, daí em diante
e sob a sua orientação, não haveria temas ou materiais tabus no Museu.
Respondendo corajosamente ao
repto do Professor e garantido o seu indispensável apoio na Junta Nacional de
Educação, Cavaleiro Paixão não apenas retoma o estudo dos materiais de Virgílio
Correia, como entre 1967 e 1968, procede a novas escavações em Alcácer do Sal
próximo do Santuário do Senhor dos Mártires, as primeiras que dirigirá durante
a sua longa carreira. Face à ausência de dados concretos das escavações de Virgílio
Correia (1925-27), nomeadamente de dados topográficos e estratigráficos, o
plano que pôs em prática visava antes de mais a relocalização da necrópole e a
descoberta de novas sepulturas em contexto estratigráfico. Numa primeira sequência
de sondagens os seus esforços foram infrutíferos, mas posteriormente,
conjugando dados de observação do terreno com informação oral recolhida
localmente, viria a descobrir e escavar oito sepulturas de incineração que lhe
proporcionaram dados essenciais para a sua dissertação. Com efeito, as
sepulturas escavadas apresentavam um significativo conjunto de materiais da II
Idade do Ferro, na sua maioria metálicos, incluindo ainda três pequenos
escaravelhos de tradição egípcia, o que não sendo uma novidade no caso de
Alcácer do Sal, vinha confirmar a importância do seu porto nas ligações com o
mundo mediterrânico, ao longo do último Milénio antes de Cristo.
Significativamente, ainda no
contexto destes trabalhos de campo em Alcácer do Sal, Cavaleiro Paixão, seria
pela primeira vez confrontado com a necessidade de dar resposta a uma
“emergência arqueológica”, uma situação com que viria a deparar-se amiúde ao
longo da sua futura carreira profissional. De facto, no âmbito de obras
municipais de alargamento da Azinhaga do Senhor dos Mártires, viu-se compelido
a escavar diversas sepulturas da vizinha necrópole romana, descoberta no
decurso da obra. Anos mais tarde, durante as décadas de setenta e oitenta,
perante os avanços das novas urbanizações associadas a esta azinhaga, Cavaleiro
Paixão viria ciclicamente a intervir neste local de antiga tradição funerária,
já como arqueólogo ao serviço da Administração Pública. Foi também nesta
intensa fase de trabalho de campo, coincidindo com o período final da
frequência do curso de História e a preparação da sua dissertação, que
Cavaleiro Paixão tomou pela primeira vez contacto com as ruínas romanas de
Tróia. Com efeito, em 1968 coadjuvou Fernando de Almeida na escavação de
diversas sepulturas paleocristãs desta importante estação arqueológica do
estuário do Sado, iniciando um ciclo de investigação que acompanharia
praticamente toda a sua carreira. Naturalmente, em 1969 e 1970 concentra-se nos
preparativos da dissertação. Analisa e descreve os materiais depositados no
Museu Nacional, no Instituto de Arqueologia de Coimbra e no Museu Municipal de
Alcácer do Sal, bem como o das suas próprias escavações, em especial o
importante conjunto metálico, que incluía cubos e arreios de carros, armas, jóias
e objetos de adorno, promovendo a sua análise metalográfica e usando os dados
obtidos nas suas conclusões. Por fim, tirando partido dos contactos
estabelecidos no Zambujal e em Toscanos com a delegação madrilena do Instituto
Arqueológico Alemão, obtém do seu director Helmut Schlunk autorização para aí
estagiar durante um mês, com livre acesso à valiosa biblioteca, cuja consulta
se revela preciosa para o tema que investiga. Naturalmente, aproveita a
proximidade do Museu Arqueológico de Madrid e a solicitude do seu Director
Martin Almagro para usar também a respectiva biblioteca e aceder ao departamento
de restauro para observação e estudo de espólios de Ávila e de Granada que lhe
interessam.
Capa da tese de licenciatura de António Cavaleiro Paixão |
Em 29 de Julho 1970, conclui a
licenciatura em Ciências Históricas com a defesa da sua dissertação de
licenciatura, dedicada “com muita consideração e estima”, ao Professor Fernando
de Almeida, mas não esquecendo no prefácio outros professores que o terão
marcado particularmente, como Virgínia Rau, Borges de Macedo e ainda Jorge de
Alarcão, da Universidade de Coimbra, neste caso pelas facilidades de acesso aos
materiais de Virgílio Correia, depositados no Instituto de Arqueologia. Tinha
então 31 anos, revelando-se esse ano determinante para toda a sua futura vida pessoal
e profissional. De facto, ainda em 1970 apresenta-se com duas comunicações sobre
a necrópole de Alcácer do Sal, ao 2º Congresso Nacional de Arqueologia
realizado em Coimbra, uma das quais em conjunto com Judite Cavaleiro Paixão, a
colega de curso com quem casou também nesse ano, a mãe dos seus dois filhos,
Gonçalo e Susana e companheira de toda a vida. Também nesse ano seria admitido
como técnico estagiário, na Junta de Investigações do Ultramar, entidade que
através do Centro de Estudos de Etnologia do Ultramar integrava algumas
componentes de investigação antropológica e arqueológica ultramarina cuja
tradição remontava a Mendes Correia que chegara a ser seu Presidente e que
conhecera nos seus quadros nomes como o de José Camarate França ou Santos
Júnior. A sua permanência na J.I.U. seria, no entanto, de curta duração, de
Maio de 1970 a Dezembro de 1971, prelúdio para outros voos. No final de 1971, António
Cavaleiro Paixão foi contratado como Assistente da recentemente criada Universidade
de Lourenço Marques (Moçambique), para onde parte acompanhado pela esposa, no
início de 1972. Aí permanecerá até Setembro de 1974, tendo lecionado durante 3 anos
letivos, Pré-história, História da Antiguidade Oriental, História da Expansão
Portuguesa e História do Brasil, cadeiras comuns aos curricula dos cursos de História da “metrópole”. Apesar da sua
curta estadia em Moçambique, Cavaleiro Paixão não deixou de se interessar pela
arqueologia local. Começa por se debruçar sobre uma série de concheiros dos arredores
de Lourenço Marques referenciados por Santos Júnior no âmbito das missões
antropológicas de Moçambique (1936-56). Posteriormente, chegou a propor um
programa de pesquisas arqueológicas para a região de Massingir, no Rio dos
Elefantes. Em Abril de 1974 participou num estágio sobre Pré-história Africana
na Universidade de Witwatersrand (Joanesburgo) a convite do Prof. Revil Mason. Em
Setembro de 1974, em pleno processo de descolonização de Moçambique, regressa
definitivamente a Portugal, com cuja arqueologia não chegara a perder o
contacto. Em Outubro de 1973 participara no XI Congresso Nacional de
Arqueologia de Espanha, realizado em Huelva e em Dezembro de 1974, pouco depois
do regresso de África, está já presente em Badajoz no Congresso de Estudos Estremenhos
com uma comunicação sobre o mausoléu lusitano-romano de Tróia, retomando a
colaboração com Fernando de Almeida, que entretanto se aposentara (1973). É
certamente no âmbito deste reencontro com o antigo professor e numa fase de
alguma indefinição profissional que se seguiu ao regresso de Moçambique, que é temporariamente
contratado pela empresa Torralta (1975) para se ocupar da direção de trabalhos
arqueológicos em Tróia. Mas a colaboração com o Professor era mais ampla,
enquadrando outros estudos como o que, conjuntamente com a esposa Judite
Paixão, produz nesse mesmo ano sobre os materiais visigóticos da Igreja de São
João dos Azinhais ou Capela de Arranas, próximo do Torrão, mas apenas publicado
em 1978 na “Setúbal Arqueológica”. Terá sido ainda nesse contexto de
indefinição profissional que António Cavaleiro Paixão se viu compelido a uma
curta incursão pelo ensino secundário, tendo estado colocado na Escola Preparatória
Nuno Gonçalves no ano lectivo de 1975-76. Mas seria aí que o Dr. Nunes de
Oliveira, alto quadro do Ministério da Educação e Cultura, o iria requisitar
para reforçar os escassos meios humanos, na área da arqueologia, da Direcção
Geral do Património Cultural, um organismo recente que viera substituir a velha
Direcção Geral do Ensino Superior e Belas Artes, do Ministério da Educação
Nacional que durante décadas superintendia, com o apoio das respectivas secções
e subsecções consultivas da Junta da Educação Nacional, em tudo o que dizia
respeito aos museus, arquivos e bibliotecas, monumentos e arqueologia.
António Cavaleiro Paixão, à direita, nas ruínas da Basílica de Tróia |
A entrada de António Cavaleiro
Paixão, em Julho de 1976, para a Direcção Geral do Património Cultural, bem como
a da sua esposa Judite Cavaleiro Paixão, reforçando uma equipa que contava
apenas com João Bairrão Oleiro, normalmente em cargos dirigentes e com Bandeira
Ferreira, já então afastado dos trabalhos de campo, dá-se no contexto de um
ambicioso projecto para a elaboração da Carta Arqueológica de Portugal. Embora nascido
no seio da Direcção Geral, o projecto contava com o apoio financeiro da
Gulbenkian, pela mão do Prof. Artur Nobre de Gusmão, director do Serviço de
Belas Artes da Fundação. Ainda que se reconhecesse a necessidade da colaboração
das Universidades, a viabilidade do projecto “Carta Arqueológica de Portugal” exigia
um mínimo de enquadramento técnico da própria Direcção Geral, para o que seriam
necessários arqueólogos experientes. Por proposta de Nunes de Oliveira, António
e Judite Cavaleiro Paixão seriam finalmente requisitados expressamente para esse
efeito. António coordenaria uma equipa de campo e Judite Cavaleiro Paixão, dada
a sua formação específica em BAD, assumiria a componente documental e
arquivística. O projecto, apesar do apoio da Gulbenkian, após a realização de um
curso de prospeções em 1977 para colaboradores eventuais e no qual António Cavaleiro
Paixão foi formador, acabou por sucumbir após uma curta experiência de terreno
na zona da barragem do Alvito, mas a sua preparação, acabou por contribuir para
a criação, poucos anos depois, no seio do IPPC (1980) de uma divisão de
inventário arqueológico com atribuições específicas de cartografia e que seria
organizada e dirigida durante algum tempo pela própria Judite Paixão. Quanto a
António Cavaleiro Paixão, enquanto único arqueólogo de campo ao serviço da
DGPC, desdobrou-se desde então na resposta às situações de emergência, nomeadamente
em Alcácer do Sal, onde as necessidades de infraestruturas chocavam
permanentemente com os vestígios do passado.
António C.Paixão, observando um corte estratigráfico, durante obras na proximidade do Olival do Sr. dos Mártires, Alcácer do Sal |
Em 1980, por ocasião do
concorrido IV Congresso Nacional de Arqueologia, realizado em Faro e que prenunciou
um intenso movimento de reestruturação da arqueologia portuguesa, por despacho
do Secretário de Estado da Cultura, António Paixão, em representação da
Administração, integrou com Carlos Tavares da Silva, Manuela Delgado e Rui
Parreira, uma Comissão encarregada de rever um muito criticado “Plano de
Trabalhos de Campo para 1980-84”. Tal comissão, porém, não se limitaria a
corrigir o referido plano, acabando por produzir um importante documento que
serviria de base à estruturação do Departamento de Arqueologia e dos Serviços
Regionais de Arqueologia, no âmbito do IPPC criado nesse mesmo ano. Muito naturalmente
e sem quaisquer complexos, António Cavaleiro Paixão viria a integrar, conjuntamente
com outros colegas mais jovens entretanto requisitados ao ensino secundário, o
novo Departamento de Arqueologia dirigido por Francisco Alves e provisoriamente
instalado no Museu Nacional de Arqueologia. Para Paixão, era o regresso a uma
casa onde década e meia antes entrara pela mão de Fernando de Almeida. E
podemos dizer que, dada a especificidade dos principais assuntos de que se
ocupou até final da carreira, nomeadamente a Arqueologia de Alcácer do Sal e de
Tróia, duas estações especialmente ligadas ao Museu Nacional, esta passaria a
ser a sua casa de trabalho por excelência, pesem embora algumas interrupções ou
desvios pontuais. Destaca-se neste aspecto o seu envolvimento, como coordenador
para a arqueologia, no projecto de recuperação e valorização das monumentais Ruínas
da Igreja de São Paulo, em Macau, promovido pelo Instituto Cultural de Macau, sob
a coordenação geral do Arquitecto João Carrilho da Graça, e que o levará durante
alguns períodos entre 1990 e 1991 ao distante Oriente. Paralelamente à sua actividade
principal como arqueólogo e técnico superior do IPPC, posteriormente IPPAR,
António Paixão, por razões de carácter, nunca se desvincularia da sua inicial
vocação pedagógica, quer no âmbito específico dos trabalhos de campo que
dirigia, apoiando os colaboradores mais jovens, quer retomando a carreira
académica que iniciara em Moçambique. No final dos anos setenta, já funcionário
da SEC, chegou a dar aulas de formação de professores no Instituto
Universitário dos Açores. Em 1982, leccionou uma cadeira de Pré-história no
Instituto Politécnico de Santarém e a partir de 1989, assumiu a regência de
diversas cadeiras de Arqueologia na Universidade Autónoma de Lisboa (UAL),
actividade que manteve até à sua aposentação em 2004.
A.C. Paixão, à direita nas escavações do Convento de Nª Sª de Aracoeli, por ocasião das obras de construção da Pousada de Alcácer do Sal nos anos 90 do século passado. |
Ainda que nunca perdendo o
contacto com os projectos relacionados com a investigação e valorização das
Ruínas de Tróia, de que foi durante anos o responsável por parte do IPPC/IPPAR,
seria a Alcácer do Sal, onde afinal a sua carreira de arqueólogo começara em 1967,
que dedicaria maior energia e atenção nos seus últimos anos como técnico do
património e investigador. Prioritariamente focalizado na problemática das
necrópoles da Idade do Ferro e da época Romana, quase sempre no quadro de
situações de emergência e salvamento, Cavaleiro Paixão teria finalmente
oportunidade no início dos anos 90 de coordenar uma grande intervenção no
coração da “acrópole” de Alcácer, em parceria com o malogrado arqueólogo João
Carlos Faria, um jovem local que se iniciara nas lides arqueológicas pela sua
própria mão e com o qual, já como arqueólogo municipal, mantinha estreita
colaboração e amizade. No âmbito do projecto de adaptação do Convento de Nª Sª
de Aracaeli a Pousada, construído
sobre o que restava da alcáçova islâmico-cristã do Castelo, aqueles arqueólogos
levaram a cabo uma vasta e complexa operação de arqueologia preventiva entre
1993 e 1998, num espaço privilegiado da antiga cidade, e de que resultou todo
um manancial de informação sobre a continuada ocupação do local, desde a
Proto-história, passando pela época romana e alcançando a presença islâmica e
conquista cristã. Num desfecho tão ou mais importante do que a escavação
arqueológica e divulgação de resultados científicos, não tão completa como se
desejaria devido ao precoce desaparecimento de João Faria e à doença de
Cavaleiro Paixão, o projecto culminaria na protecção, salvaguarda e musealização
de parte das estruturas e do espólio então descobertos, incluindo as ruínas de
um importante santuário da Idade do Ferro ainda activo em época romana,
integradas em impressionante cripta arqueológica construída sob a própria
Pousada e aberta ao público desde 2008. Ainda que nem António Cavaleiro Paixão,
já aposentado desde 2004 por razões de saúde, nem João Carlos Faria, falecido em
2006, tenham podido estar presentes à sua inauguração, a Cripta Arqueológica de
Alcácer, é concepção de ambos, mestre e discípulo, ficando para o futuro como um
dos maiores legados materiais da arqueologia pública portuguesa da transição do
século.