quarta-feira, 11 de janeiro de 2017


O MEGALITISMO DE ÉVORA E O TURISMO
Dados para uma história já antiga



Não apenas o Cromeleque dos Almendres, mas o megalitismo em geral do Alentejo e em particular da região de Évora, são hoje uma realidade patrimonial adquirida pelo turismo, e não só..., apesar da continuada ausência de qualquer estratégia concertada para a sua promoção ou salvaguarda, por parte das várias tutelas teoricamente interessadas (Cultura, Turismo, Autarquias, etc...).

Graças à mais valia telúrica de toda a sua envolvente, há poucas semanas, os Almendres serviram uma vez mais de cenário para filmagens de uma grande metragem ("Aparição"), na sequencia de contactos com as entidades da tutela do património classificado e os proprietários das terrenos onde se situam. Mas, a "disponibilidade" do monumento é infelizmente  (e perigosamente) de tal ordem, que é raro o dia em que não chega ao nosso conhecimento, o uso ou mesmo abuso indiscriminado do seu espaço e da sua imagem, para os fins mais diversos. Como se pode neste momento confirmar diariamente na RTP1, com a passagem de uma série ("O Sábio") em que, não sabemos em que contexto pois ignoramos o enredo, aparecem com grande destaque os menires dos Almendres! Desconhecemos se alguma entidade pública (tutela do património) ou privada (proprietários) foi ouvida previamente para o efeito, mas temo que não, como infelizmente é recorrente.

Naturalmente este interesse particular pelo MEGALITISMO desta região não surgiu por mero acaso, de um momento para o outro. Há de facto uma história que remonta nos seus primórdios à transição do século XIX para o século XX e que tem nas suas origens o envolvimento da vetusta  Real Associação dos Arqueólogos e Architectos Portugueses, na elaboração da primeira lista de Monumentos Nacionais que acabaria por ser publicada nas vésperas da implantação da República em 1910. Colaborou nessa acção o arqueólogo e historiador eborense Gabriel Pereira, a quem se deve o levantamento "à pena", de várias antas nos arredores de Évora. A acção posterior do Grupo Pro-Évora, a mais antiga Associação de Defesa do Património do país fundada em 1919, também viria a ter um papel importante no reconhecimento e na salvaguarda de numerosas antas dos arredores de Évora, sendo ainda hoje o seu arquivo um repositório fotográfico fundamental para alguns destes monumentos. Mas quem viria perla primeira vez a chamar a atenção de forma objectiva para o potencial turístico do MEGALITISMO, seria talvez Afonso do Paço, presidente da Associação dos Arqueólogos Portugueses, num pequeno artigo publicado em 1963 na revista "A Cidade de Évora". De referir que nesta época o alemão Georg Leisner tinha já publicado, em português e também naquela revista eborense, um extenso inventário das cento e cinquenta antas então conhecidas ("Antas dos arredores de Évora, 1949) instrumento que desde então, tem servido de base à divulgação deste património.


Embora Afonso do Paço, generalize ao património arqueológico em geral, aquele potencial e ultrapasse até os limites do Concelho de Évora (dá nesse artigo algum destaque ao Castelo da Lousa, sítio romano de Mourão, hoje sob as águas do Alqueva), começa por abordar a excepcional mais valia turístico-cultural do megalitismo de Évora, dando como exemplo de conservação e acessibilidade a Anta do Barrocal. 

A foto da Anta do Barrocal no artigo de Afonso do Paço


No entanto, o primeiro trabalho de fundo neste campo, já numa perspectiva de "Roteiro" de apoio ao turista mais interessado, ficaria a dever-se a um médico de Reguengos de Monsaraz (José Pires Gonçalves), mais conhecido como grande estudioso e defensor da vila fortificada de Monsaraz, mas que teve também assinalável actividade como arqueólogo particularmente interessado no rico megalitismo de Reguengos (ver a propósito: http://pedrastalhas.blogspot.pt/2015/05/para-historia-do-cromeleque-do-xerez-o.html). O seu trabalho, um opúsculo separata de "A Cidade de Évora", foi editado em 1975, embora dando realce aos núcleos megalíticos de Évora e de Reguengos, abrangia também importantes monumentos de Montemor e de Avis. Mas a grande novidade desse "roteiro" era a chamada de atenção para a nova realidade megalítica da região que passava pela recente descoberta do megalitismo não funerário (menires e cromeleques), uma realidade que passara despercebida ou não interessara a Georg e Vera Leisner. Assim, das três dezenas e meia de monumentos identificados e localizados, mais de metade são já menires ou recintos megalíticos. Para além dos que o próprio Pires Gonçalves identificara na zona de Monsaraz (como o Xerez, Outeiro, Perdigões ou Bulhôa) aparecem também já devidamente referenciados os menires e cromeleques de Évora, reconhecidos por Leonor de Pina, nomeadamente os Cromeleques dos Almendres e da Portela de Mogos.


Mais uma vez a fotogénica Anta do Barrocal, agora no "Roteiro" de Pires Gonçalves

O "Roteiro" de Pires Gonçalves, seria a base de divulgação turística do megalitismo alentejano até praticamente ao início dos anos 90 do século passado, graças a um "desdobrável" com arranjo gráfico e desenhos originais de António Covinha, publicado pouco tempo depois pela Câmara Municipal de Évora com base no referido "roteiro" e que foi distribuído durante largos anos no posto de turismo da cidade.






No final dos anos 80, já no contexto da estreita colaboração entre a Câmara Municipal e o Serviço Regional de Arqueologia do Sul, sedeado na cidade desde 1980, inicia-se uma nova e decisiva fase de divulgação do megalitismo eborense. Uma das grandes dificuldades na valorização deste património, reside na sua dispersão no território, quase sempre em propriedade privada e por vezes com acessos difíceis. O facto da Herdade dos Almendres ter estado ocupada pelos trabalhadores durante a "Reforma Agrária", viria a facilitar não apenas as escavações e restauro dos anos 80 (promovidas pela autarquia e dirigidas por Mário Varela Gomes) mas permitiria a melhoria do acesso ao mesmo através da reconstrução de um estradão de que ainda hoje (apesar dos problemas de conservação) garante a visita ao Cromeleque. Na sequencia dessa obra que envolveu custos significativos para a Câmara, a autarquia ensaiaria então a concretização de um primeiro "circuito turístico-megalítico".Este apoiava-se num novo desdobrável (português, inglês e francês), apostando num percurso circular com início e fim em Évora. Propunha-se a visita aos Almendres, seguindo depois para a Gruta do Escoural e Anta-Capela de São Brissos (monumentos do vizinho concelho de Montemor), terminando na Anta Grande do Zambujeiro já no regresso a Évora.


Alguns detalhes do novo folheto concebido por António Covinha (1989)


A divulgação deste novo "produto" (como hoje gostam de falar os agentes turísticos) viria a ser acompanhada por alguns órgãos de comunicação. Guardo, como exemplo desse esforço, o recorte do suplemento do DN de 2 de Junho de 1991, com uma extensa reportagem sobre o megalitismo de Évora e Reguengos, provando com outros recortes similares já divulgados neste "blog", que o reconhecimento generalizado da importância deste património, não é afinal um "mero acaso", mas o fruto de um esforço longo e continuado, ainda que raramente obedecendo a uma planificação objectiva...


Parte da reportragem do DN Magazine de 2 de Junho de 1991
O salto qualitativo neste domínio, porém, sucederia em 1992 quando foi possível conjugar os meios da Câmara e da então Direcção Regional do IPPC (por extinção do SRAZS) num projecto que juntava pela primeira vez a necessária divulgação informativa com a não menos importante intervenção no terreno. Partindo da muita informação disponível, foi realizado trabalho no terreno identificando os monumentos que pelo seu estado de conservação e acessibilidade poderiam de facto ser integrados num verdadeiro roteiro megalítico. Selecionados os monumentos (duas dezenas e meia), negociados com os proprietários a criação de meios de acesso quando necessários (estabelecimento de corredores de ligação às estradas nacionais ou municipais e instalação de algumas "porteiras"), passou-se de seguida ao "plano de sinalização". O projecto partia do princípio que o turista poderia procurar descobrir os monumentos sem o apoio de terceiros e para além da informação escrita que seria disponibilizada num novo e completo roteiro (editado em português, inglês, francês e espanhol), foi implementado no terreno um plano de sinalização. Este incluia sinais de identificação ou mesmo de simples direção, através de um logotipo criado para o efeito.
O logotipo do "Roteiro megalítico de Évora", concebido por Rui Belo


Capa e contracapa da edição em português do Roteiro do Megalitismo de Évora, 1992 (também editado em inglês, francês e
espanhol) há muito esgotado. Fotos de Manuel Ribeiro. O Roteiro contou ainda com a colaboração do autor deste blog, de Rui Parreira, Miguel Lago da Silva,  Panagiotis Sarantopoulos e António Couvinha (design gráfico).
Do ponto de vista da lógica do "roteiro", eram propostos três circuitos diferenciados, todos com início e fim na cidade de Évora. O primeiro, e que de algum modo já então perceiamos ser o de maior potencial, orientava-se para Oeste e incluia sítios que viriam a tornar-se paradigmáticos como o Cromeleque dos Almendres, a Anta Grande do Zambujeiro, as Antas de Vale Rodrigo (então em estudo por Philine Kalb e Martin Hock), não esquecendo as sempre citadas Antas do Barrocal. O roteiro ignorava então o Cromeleque da Portela de Mogos, já conhecido mas sem condições de visita, e o Cromeleque de Vale Maria do Meio, ainda não identificado à época. O Roteiro propunha ainda dois percursos complementares. Um na direção da Azaruja, facilitando a visita  a vários monumentos mas com especial destaque para dois exemplares excepcionais, as Antas do Paço das Vinhas e da Herdade das Cabeças. O outro, orientado para a Torre dos Coelheiros, recuperando a memória de alguns monumentos, como as Antas do Freixo de Cima que, tal como o Paço das Vinhas, tinham sido objecto da atenção do grande arqueólogo francês Émile Cartaillac ainda no século XIX. 

Da estrutura informativa destes circuitos hoje, praticamente, já nada resta, com excepção de uma ou outra placa sinalizadora já muito enferrujada.


O que resta (ou restava, pois desconheço a data da foto) do painel sinalizador da Anta do Paço das Vinhas (foto de Miguel Palmeiro, importada do Portugal Megalítico (Facebook)


A Anta 2 de Pinheiro do Campo (S.Sebastião da Giesteira) que integrava o Circuito 1. Ainda apresenta (Março de 2017) a antiga placa informativa, muito danificada, bem como restos da "porteira" de acesso então instalada com a autorização dos proprietários. No âmbito deste projecto de circuito, a TELECOM da altura, retirou um poste telefónico que estava cravado o que resta da mamoa original.






Ecos do novo roteiro na imprensa local e nacional
Não terminou neste projecto a valorização do património megalítico eborense. Aliás, nos anos imediatos (década de 90) e já com o apoio dos fundos comunitários (Projectos LIFE) a Câmara Municipal viria a promover ou a apoiar diversas intervenções, ainda que concentradas na zona de Guadalupe-Valverde, que consolidariam este recurso patrimonial, como uma mais valia com futuro.

 Tiveram nesse início dos anos 90 particular importância e repercussão, as grandes intervenções de investigação e restauro então realizadas nos três Cromeleques de Guadalupe (Almendres, Portela de Mogos e Vale Maria do Meio) três monumentos classificados que poderiam ser a espinha dorsal de um verdadeiro "Stonehende" ou um "Carnac" nacional. Infelizmente, por razões financeiras, legais e eventualmente políticas, há muito que a autarquia de Évora deixou de ter capacidade de intervir neste património, como o fez no passado. Se os Almendres ainda conseguem transmitir alguma sensação de ordenamento, apesar da ausência de qualquer gestão do sítio, a visita à Anta Grande do Zambujeiro, verdadeira catedral do megalitismo alentejano, é cada vez mais penosa, face ao grau de degradação que a sua estrutura atingiu.

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