Monte da Fainha (Evoramonte)
Um sítio “fantasma” do Paleolítico Superior no Alentejo
Há sítios arqueológicos assim. Um nome muito citado na
bibliografia especializada mas que, quando confrontado com a realidade do
território, parece escapar a toda e qualquer materialidade. O Monte da Fainha, um sítio clássico do
Paleolítico Superior Português (pelo menos durante algumas décadas do século
passado), representa bem essa categoria de sítio quase fantasma, não fora a meia
dúzia de peças conservadas, quase por milagre, em dois museus portugueses.
Ainda por cima, este estatuto já de si fugidio, seria agravado por uma confusão
toponímica involuntariamente engendrada por Jean Roche, o arqueólogo francês
responsável pela sua divulgação científica (chegou a ser objecto de uma
comunicação específica à Sociedade Pré-histórica Francesa em 1972), que a certa
altura lhe trocou o nome por “Monte da Rainha”.
O poço do Monte da Fainha, no vale a Oeste de Evoramonte, hoje atravessado pela A6 (foto de 1988) |
A descoberta
Em 1950, o proprietário do Monte da Fainha, (uma pequena
herdade alentejana hoje atravessada pela A6, situada no vale a nascente da colina
onde se ergue o Castelo de Evoramonte) mandou construir um poço em zona baixa,
próxima de uma linha de água. Quis o acaso que, a presença na propriedade de
Luciano Ribeiro, sócio da Associação dos Arqueólogos Portugueses (secção de
Heráldica e Genealogia) e amigo do Professor Mendes Correia, tenha permitido a
identificação de um conjunto de estranhos artefactos de pedra talhada
aparecidos nas terras retiradas para a abertura do poço. Apesar da peculiaridade
do talhe, a sua natureza intencional não escapou à observação de Luciano
Ribeiro que os guardou (desconhecemos o número exacto recolhido na altura) e os
mostrou mais tarde a Mendes Correia e ao Padre Jean Roche. Este pré-historiador
francês, então a trabalhar em Portugal nos Concheiros de Muge pela mão do
próprio Mendes Correia que ali fizera também investigações, não teve qualquer
dúvida pela natureza do talhe, em atribuir os materiais ao Solutrense, um período do Paleolítico Superior então praticamente
inédito em Portugal (à excepção de alguns raros materiais identificados em 1942
por Henri Breuil e Georg Zbyzewski, nos espólios das antigas escavações nas
Grutas da Furninha (Peniche) e da Ponte da Lage (Caxias). No entanto, o Monte
da Fainha, só dois anos após a descoberta seria visitado por Jean Roche e
Mendes Correia. Nessa altura, segundo o relato de Roche publicado no Arqueólogo
Português muitos anos depois (1968), já não conseguiram recolher mais
artefactos e o que era mais “curioso”, nas palavras do próprio Roche, nas
terras retiradas na abertura do poço, não conseguiram observar quaisquer
vestígios de restos de talhe que poderiam ter passado despercebidos a Luciano
Ribeiro, dada a sua pouca familiaridade com este tipo de materiais. Em 1954, já
depois de H.Vaultier ali ter recolhido mais alguns artefactos “solutrenses”, certamente
numa das suas habituais excursões arqueológicas com Camarate França, este
último com Mendes Correia, realiza junto ao poço, algumas “pequenas sondagens”.
Recolhem então novo lote de peças solutrenses, mas também não registam
quaisquer outros vestígios, nomeadamente restos de talhe ou de habitat.
Confirmando o estatuto especial do sítio e a atribuição cronológica ao
Solutrense dos artefactos observados, o Monte da Fainha seria visitado em 1957
pelo chamado “Papa da Pré-história”, o Abbé Henri Breuil (1887-1961),
acompanhado por Georg Zbyzewski e Octávio da Veiga Ferreira, dos Serviços
Geológicos de Portugal e o omnipresente H.Vaultier. (Sobre o papel na
arqueologia deste industrial de sucesso, já tivemos oportunidade de falar
noutra ocasião: ver aqui sobre H.Vaultier).
Provavelmente esta seria a última visita arqueológica ao sítio antes da sua
divulgação científica por Roche (1968,Portugal, 1972, França, 1974, Espanha) e
a sua própria implantação topográfica rapidamente cairia no esquecimento, até
porque os arqueólogos mais ligados ao sítio, foram entretanto desaparecendo
(Mendes Correia em 1960, Camarate França em 1963, H.Vaultier em 1969).
Os artefactos do
Monte da Fainha, o seu significado e o seu destino
Como já referimos, o que tornava este sítio especial era, por
um lado, a inequívoca atribuição cronológico-cultural do seu conjunto
artefactual ao período Solutrense (entre 20 000 e 15 000 a C), a ausência de
quaisquer outros vestígios arqueológicos e por fim a raridade de vestígios do
Paleolítico Superior então conhecidos em Portugal, em especial no Alentejo.
Jean Roche no seu artigo de 1968, publicado n’O Arqueólogo Português, sintetiza assim esta problemática:
Um número muito
restrito de artefactos, vinte peças que atribui aos conjuntos recolhidos
por Leonel Ribeiro e Vaultier ainda que referindo a existência de mais uma dezena que teriam
sido recolhidas nas sondagens de Camarate França e Mendes Corrêa, que não
chegou a observar. No entanto, o número exacto de objectos descobertos e o seu
destino, é uma questão em aberto e que dificilmente poderá vir a ser
esclarecida…
Um conjunto
tipologicamente homogéneo, uma vez que todos os artefactos analisados cabem
na categoria das “folhas de loureiro”, nome que advém da forma foliácea e da espessura
fina destes artefactos, normalmente em sílex, obtidos por talhe em ambas as
faces e que seriam usados como pontas de lanças. Face à ausência de outros
artefactos ou mesmo de qualquer contexto arqueológico, Roche concluía que a
homogeneidade do conjunto só poderia ser explicada por uma escolha intencional
cuja finalidade seria impossível determinar. A propósito recorda um achado
semelhante verificado na abertura de um canal em 1873 em Volgu (França), também
atribuído ao Solutrense. As circunstâncias deposicionais, melhor descritas
naquele caso, haviam levado à sua interpretação como um “esconderijo”. Roche não avança explicações para o Monte da
Fainha, mas refere que Breuil a quando da sua visita à Fainha em 1957, havia colocado
duas hipóteses: vestígios de uma sepultura isolada ou de um acampamento muito fugaz
de um grupo de caçadores nómadas.
Naturalmente, nenhuma das várias hipóteses ajudava a
compreender o isolamento geográfico do achado, em pleno “deserto paleolítico”
Alentejano... Mas essa circunstancia era facilmente justificável pelo atraso da
investigação paleolítica em Portugal, concentrada normalmente nos terraços
marinhos ou, quanto muito, nas margens dos grandes rios. O reconhecimento de
outras provas da presença dos caçadores-recolectores do Paleolítico Superior no
Alentejo, seria apenas uma questão de tempo e oportunidade, conforme a
descoberta em 1963 da Gruta do Escoural e o reconhecimento da sua arte
paleolítica viriam a confirmar pouco depois destes eventos, para não falarmos
de outras descobertas mais recentes, nomeadamente nas margens do Guadiana.
Fragmento de lâmina solutrense encontrada, a posteriori, nos espólios das antigas escavações da Gruta do Escoural. (depositada no Museu de Arqueologia de Montemor-o-Novo) |
O problema
é que, mesmo para regiões, como o maciço calcário estremenho, onde hoje está
reconhecida uma intensa ocupação durante o Paleolítico Superior, os novos dados
arqueológicos viriam a ser, quase sempre, confirmados após a reanálise dos
materiais recolhidos em antigas escavações e guardados nos Museus. Desta tarefa
ocupar-se-ia João Zilhão nos anos oitenta e noventa do século passado, congregando
os resultados na sua monumental tese de Doutoramento (O paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, Colibri, 1994).
Entre os sítios que Zilhão obrigatoriamente “revisitou”, contava-se o Monte da
Fainha, a que dedica uma dezena de páginas. O problema é que o paradeiro da
coleção entretanto publicada por Roche se perdera com o desaparecimento dos
“proprietários”. Pelo menos parcialmente, porque às mãos de Zilhão ainda
chegariam três dos vinte artefactos originais. Resgatados num leilão por
Gustavo Marques que entretanto os disponibilizara para estudo , actualmente fazem
parte das coleções do Museu Nacional de Arqueologia, uma vez que os herdeiros
daquele conhecido arquitecto-arqueólogo , ofereceram a sua colecção particular
à quele Museu.
As conclusões publicadas por Zilhão (e que de algum modo
poderão ser consideradas definitivas face aos dados disponíveis) não viriam a divergir
das de Jean Roche, pese embora o facto de dispor de novas observações no local
(como veremos mais adiante). Apesar de algumas características tipológicas
diferenciadas dos padrões habituais, nomeadamente a sua maior espessura, que
Zilhão explica pelo facto de se tratar de peças inacabadas, confirma a sua
atribuição inequívoca ao Solutrense. (Havia a possibilidade de se tratar de
material postpaleolítico, pois a técnica de talhe bifacial, uma vez adquirida,
não se perdeu e seria usada até à Idade do Bronze, para a produção de pontas de
seta e de alabardas em sílex, por exemplo). A ausência de outros materiais arqueológicos,
pese embora a probabilidade do conjunto poder estar em posição secundária,
acaba por trazer plausibilidade à hipótese de estarmos perante um esconderijo
de artefactos inacabados, mantidos em reserva e prontos para serem concluídos e
usados pelo caçador ou caçadores que regularmente fariam este percurso. É neste
aspecto, aliás, que a tese de Zilhão ganha maior colorido histórico-cultural…”O local podia corresponder, com efeito, a um
marco importante nos itinerários praticados pelos caçadores solutrenses
(viajando em grupo ou individualmente), e que tenha sido essa a razão que os
levou a aí acumular utensílios de pedra em antecipação de necessidades
futuras…”
O Sr. Filipe Franja, o homem que ao abrir o poço da Fainha, descobriu o conjunto de artefactos "solutrenses". Aqui visitando as sondagens do Outono de 1988. |
A minha aventura
pessoal no Monte da Fainha
Não sei se o João Zilhão chegou a visitar alguma vez o sítio
do Monte da Fainha mas a pouca informação nova que usa na sua interpretação, e
que naturalmente cita, foi-lhe disponibilizada por mim. É que o Monte da Fainha
acabou por se cruzar na minha carreira arqueológica…
No dia 10 de Agosto de 1988, nas vésperas da chegada a Portugal
de Marcel Ote, professor na Universidade de Liége que me contactara por
indicação do próprio Zilhão na perspectiva de desenvolvimento de um projecto de
investigação Luso-belga sobre o Paleolítico Superior no Alentejo, resolvi
procurar o “Monte da Fainha”. O sítio havia sido descoberto então há 38 anos e
era natural que em Évoramonte, houvesse ainda testemunhas do acontecimento. E,
com efeito, não encontrei a testemunha mas descobri com facilidade o próprio responsável
pela abertura do poço, o sr. Filipe Franja, então com 78 anos ainda bem rijos e
que me acompanhou de bom grado. Tomei nesse dia as seguintes notas que
transcrevo: “Relocalizei o sítio exacto da estação solutrense do Monte da
Fainha, graças ao sr. Filipe Franja, o homem que havia feito o tal poço. Pela
descrição das condições da descoberta tudo leva a crer que poderá tratar-se de
um acampamento de superfície bem conservado. A área afectada pelo poço é mínima
e os materiais referidos nas publicações
devem representar apenas uma parte do que se descobriu e dispersou. Por
outro lado há ainda no local vestígios, como prova a descoberta hoje mesmo de mais
uma peça solutrense.”
As duas únicas peças solutrenses (jaspe e sílex) recolhidas nos trabalhos de 1988 e hoje depositadas no MNA |
Tratava-se obviamente de uma “conclusão precipitada”, mas
compreensível. É que ao chegar ao poço, acompanhado pelo sr. Franja, a primeira
coisa que vi ao olhar para o chão foi uma pequena ponta de jaspe, de talhe
bifacial tipicamente solutrense, o que parecia ser um indício inequívoco não
apenas da exactidão da informação topográfica, mas também da esperada preservação
do sítio. E assim, três dias depois, já
com Marcel Ote e o seu assistente Jean-Marc Léotard no Alentejo, estava de novo
em Evoramonte, tendo ficado decidido nesse mesmo dia que, no âmbito dos
trabalhos que planeávamos e que, prioritariamente se centrariam na Gruta do
Escoural, faríamos também algumas sondagens na Fainha para identificação e caracterização
do que julgávamos então ser um solo de habitat paleolítico, preservado a uma
certa profundidade no fundo do vale, próximo de antiga linha de água e coberto
por depósitos coluvionares. A “fé” era
tão grande que os trabalhos se iniciaram nesse mesmo Outono, aproveitando o
regresso da equipa Belga a Portugal, por ocasião do Colóquio de Arqueologia organizado
em Montemor-o-Novo para comemorar os 25 anos da descoberta da Gruta do Escoural,
tendo decorrido entre 25 de Outubro e 6 de Novembro de 1988.
Os resultados, no entanto seriam dececionantes, apesar da
abertura de quatro grandes sondagens que, cobriram praticamente todas as possibilidades
de extensão de um eventual nível arqueológico que nunca apareceu... E mesmo
crivando sistematicamente os sedimentos escavados, apenas nos foi possível
encontrar uma única pequena peça em sílex, apresentando talhe solutrense que
assim se vinha juntar à que recolhera em superfície. Em nova visita ao local,
já durante as escavações, o sr. Franja reafirmaria que haveria muito mais
material do que aquele que fora publicado por Jean Roche mas insistiu na
concentração do mesmo na vala do poço, falando mesmo em “amontoado” de peças.
Recordou também que algum tempo depois terá feito uma escavação no exterior
junto à parede do poço mas que terá aparecido pouco material. Tratou-se, provavelmente,
das referidas escavações de Camarate França e Mendes Correia em 1954, nas quais
terão aparecido apenas algumas peças. E de facto, nas nossas sondagens mais
próximas do poço, havia evidentes indícios de remeximentos mais ou menos
recentes.
Assim, ainda que cumpridos os requisitos técnicos normais,
nomeadamente no que respeita aos registos e relatórios, a equipa luso belga
concentrar-se-ia posteriormente nos trabalhos do Escoural, entretanto
publicados em Portugal e na Bélgica (“Trabalhos de Arqueologia”, nº8, IPPAR, 1995
e “ERAUL”, 65, Liége, 1996) acabando por deixar inéditos os resultados
negativos, ainda que significativos, das escavações no Monte da Fainha. De
algum modo Zilhão, acedendo e integrando esta informação na sua interpretação
do sítio, acabaria por felizmente colmatar essa lacuna.
Facsímile da resposta de Huet Bacelar, confirmando a existencia de dois artefactos do Monte da Fainha, no Instituto de ANtropologia "Prof. Mendes Corrêa". |
Mas não ficou por aqui o meu pequeno mas esforçado contributo
para esta malograda história arqueológica. Roche no seu artigo de 68, uma vez
que haviam já falecido Mendes Correia e Camarate França, dá como desaparecidos
os poucos artefactos (fala numa dezena) que estes terão encontrado nas sondagens
de 1954. Valendo-me da minha antiga amizade com Huet Bacelar, então responsável
pelas colecções de Arqueologia do Instituto de Antropologia “Pro.Mendes Corrêa”,
da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, escrevi-lhe pedindo que
procurasse eventuais materiais de Evoramonte ali talvez depositados pelo
fundador e patrono da instituição. Na
volta do correio recebi a resposta do Huet, informando que de facto havia duas “pontas
de seta” (de facto uma “folha de loureiro” inteira e outra partida)
provenientes da “Herdade da Fainha, Évora”, oferecidas ao Museu do Instituto em
5 de Outubro de 1957, por Luciano Ribeiro, Camarate França e Pires Soares. Como
em 2011, resolvi formalizar a entrega no Museu Nacional de Arqueologia, das
duas peças encontradas por mim no Monte da Fainha, o balanço do destino da
totalidade do espólio conservado (7 artefactos!) desta importante estação
arqueológica alentejana, será o seguinte:
- dos
materiais recolhidos por Luciano Ribeiro, Camarate França, H.Vaultier e Mendes
Correia, cujo número total desconhecemos, subsistem no Museu Nacional de
Arqueologia, 3 artefactos (adquiridos num leilão por Gustavo Marques e doados
ao MNA pelos seus herdeiros); a este pequeno conjunto juntaram-se em 2011, as
duas únicas peças obtidas nas sondagens luso-belgas de 2008. No antigo Instituto
de Antropologia da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (hoje ao que
julgo integrado no Departamento de Biologia), conservar-se-ão, segundo
informação de 1988, os 2 artefactos oferecidos por Luciano Ribeiro (o
descobridor da Fainha) Camarate França e Pires Soares.
Jean Marc Léotard desenhando os cortes de uma das sondagens de 1988 no Monte da Fainha |