sábado, 7 de abril de 2018


Jacques TIXIER 

(1 de janeiro de 1925-3 de abril de 2018)

Jacques Tixier, nas Portas do Ródão (foto de Luis Raposo)

Através de uma nota enviada ao ARCHPORT pelo Luis Raposo tive conhecimento do desaparecimento de mais um grande nome da Arqueologia pré-histórica francesa, JACQUES TIXIER. Em várias notas historiográficas, me tenho aqui referido, à grande influência que a "escola francesa" teve para a geração de arqueólogos portugueses a que me orgulho de pertencer. De facto, para além da tradicional relação cultural com a França, no contexto geral das Humanidades (hoje irremediavelmente ultrapassada pelo universo anglo-saxónico), os estudantes de Letras que nos anos 70 e 80 do século passado se interessavam sobretudo pela Pré-história Antiga (como os que integravam o GEPP-Grupo para o Estudo do Paleolítico Português)  procuravam nas obras de um conjunto de grandes pré-historiadores franceses, os indispensáveis conhecimentos e inspiração para a concretização dos projectos de pesquisa com que então "sonhavam". 

Por circunstâncias várias, a que não foi estranha a abertura de fronteiras e de perspectivas que o "25 de Abril" proporcionou, alguns de nós acabaríamos por vir a estabelecer relações de colaboração e até de amizade, ao longo das respectivas carreiras, com alguns dos "pré-historiadores franceses" que nos haviam inspirado. Pelas leis naturais da vida, a maioria desses arqueólogos foi entretanto desaparecendo, tal como acaba de acontecer com Jacques Tixier, um verdadeiro "senhor" da Pré-história mundial, que conhecemos em 1978 em Chenavele, graças à amizade com outro grande nome já desaparecido em 2015, René Desbrosses  ( ver aqui ) .

O grupo de arqueólogos-estudantes que em 1978 teve oportunidade de conhecer pessoalmente Jacques Tixier (já então um pré-historiador de renome mundial) nas escavações de La Colombière, em Chenavele: à esquerda, o Luis Raposo. Reconhecem-se ainda José Mateus, Maria João Coutinho, Ana Isabel e Francisco Sande Lemos (foto de ACS)

Pessoalmente ainda recordo bem a sessão pública sobre "talhe experimental de silex" que Tixier realizou no Museu Nacional de Arqueologia mas foi sobretudo o Luis Raposo que manteve mais estreitas relações de trabalho e amizade com o arqueólogo agora desaparecido. No emotivo documento que entretanto divulgou, Luis Raposo recorda entre outros factos, a passagem de Tixier nas escavações da Foz do Enxarrique, um importante sítio do Paleolítico Médio da zona do Ródão, a cuja escavação tive a honra de estar ligado nos seus primórdios, e que viria a ter um papel relevante na renovação dos estudos paleolíticos em Portugal.


Com a devida vénia aqui transcrevo o texto do Luis Raposo, bem como algumas das imagens que a ilustram, e que julgo se enquadram no carácter memorialista de uma certa época, que este blog tem mantido. 


"Adieu, Jacques Tixier !

Confesso que, mais do que pesaroso, fiquei chocado ao saber do falecimento de Jacques Tixier, talvez o último “senhor” da longa, rica e hoje já velha “escola francesa” de tipologia e tecnologia líticas.iquece

Recordo com grande emoção os contactos que tivemos, desde Chenavel até Ródão. Recordo a sua forma de ser simples, a sua frontalidade amiga e pedagógica, a sua profunda humanidade. Recordo o seu saber, a sua mestria, mas recordo sobretudo recordo e reverencio a sua história pessoal única e fortemente inspiradora.

Jacques era um humilde professor do ensino primário, perdido algures no interior da Argélia, quando pelo contacto com Lionel Balout despertou para a Pré-História e o estudo de materiais líticos. E nunca deixou de ser, dentro de si, esse professor primário. Regressado a França era já apreciado pelo rigor analítico, e, simultaneamente, pelo espírito funcional e prático que pôs tanto na sua tipologia dos machados de mão (a primeira e até hoje a mais eficaz tipologia tecnológica de um conjunto importante de utensílios do Acheulense) como nas suas tipologias e catálogos de formas das indústrias microlíticas e microlamelares do Norte de África. Tornou-se então também grande amigo de François Bordes – que o tinha em elevadíssima consideração (coisa rara em Bordes, como se sabe).

Nunca quis seguir a via formal de investigador e muito menos académico. Preferiu sempre a liberdade de fazer o que lhe dava gosto e nunca suportou a hierarquia empalhada e de salão. Por isso nunca se doutorou – e eu pude bem testemunhar as suspeições a que tal dava origem por parte do establishment universitário francês, mesmo depois de lhe ter sido conferido um grau de doutor ad-hoc, com base em relatório que fez da sua vida de pré-historiador. Recordo, por exemplo, as dificuldades que por causa disso senti quando o convidei para meu orientador de doutoramento – o que ele logo aceitou com amizade quase paternal. Só mais tarde, o CNRS viria a abrir-lhe as portas com a criação de uma Unidade de Investigação feita à sua medida (tanto na definição da missão como até na localização excêntrica, fora de Paris) e de que ele aceitou ser director.

Recordo-o finalmente connosco, em Portugal. No Museu Nacional de Arqueologia, onde nos deliciou com as suas sessões de tecnologia experimental. Mas sobretudo em Ródão, nas escavações da Foz do Enxarrique. Recordo aí como se juntou aos escavadores, carregando baldes como os outros para a crivagem e pedindo-me que o colocasse num quadrado, sem sequer dizer aos participantes quem ele era. Recordo como certo dia, não sabendo com quem falava, uma estudante espanhola ao seu lado o recriminava por ser menos atento na decapagem do solo… desculpando-se ele com trejeitos quase envergonhados (a mesma estudante viria mais tarde a desfazer-se em desculpas quando eu lhe disse com quem tinha estado ao lado durante a sua estadia entre nós). Recordo os convívios que tivemos, ao almoço, em mesa corrida, ou em sessões casuais de introdução ao talhe da pedra. Recordo as discussões vivas que tivemos naquele local, em face de peças que íamos descobrindo. Uma em especial, tem-me percorrido toda a vida: um núcleo (para mim) ou biface (para ele) que nos provocou alguma exaltação, tendo a discussão terminado com ele, não convencido de todo, a dizer-me “pronto, a escavação e o sítio é teu e eu calo-me” (ainda hoje eu penso que tinha razão, devo acrescentar, e publiquei entretanto descrição aprofundada da dita peça, que lhe enviei e ele magnanimamente acusou ter recebido e apreciado).

Enfim, de Jacques Tixier o mais que posso dizer é que o recordo. E recordarei sempre. Tudo o resto, fica dentro de mim.

Luís Raposo"



Jacques Tixier nas escavações da Foz do Enxarrique (Foto de Luis Raposo)


Jacques Tixier, em sessão de talhe experimental, para os participantes das escavações da Foz do Enxarrique (no acampamento da "Sra da Alagada", Ródão- Foto de Luis Raposo)









quarta-feira, 4 de abril de 2018

"APARIÇÃO" NAS PEDRAS TALHAS


Está em exibição numa das novas salas de cinema de Évora, o filme APARIÇÃO, baseado na conhecida obra homónima de Virgílio Ferreira. As rodagens tiveram lugar na própria cidade de Évora e arredores em Novembro de 2016, procurando ir ao encontro do peculiar ambiente social, urbano e rural, dos anos 50 do século XX em que o romancista coloca a acção. A referencia neste blog resulta do facto de, mais uma vez, as pedras talhas dos ALMENDRES, terem servido de cenário cinematográfico, situação que não é nova ( ver aqui ).

Quando no Outono de 2016, fui contactado pela respectiva produção (através da Direcção Regional de Cultura do Alentejo) para conhecimento prévio das condições para filmar nos Almendres (uma atenção e um cuidado que nem todos têm, pois por vezes só damos pelas filmagens ou outras actividades "a posteriori", como aconteceu com a novela "O Sábio" que passa actualmente na RTP1), tive então oportunidade de transmitir a habitual informação: o Cromeleque dos Almendres é um "monumento nacional" e como tal, a entidade da tutela do Ministério da Cultura (DRCA) deve ser ouvida sobre as condicionantes técnicas a ter em consideração nas acções a desenvolver no local e na sua envolvente mas compete a última palavra no que respeita a autorizações, aos "proprietários" (que no caso em questão não costumam levantar objecções...pois, infelizmente o seu interesse relativamente ao monumento localizado na sua Herdade é o que se conhece e a que já nos temos aqui referido). 

Acrescente-se ainda que, conhecendo a obra literária em questão (e que aproveitei para reler), não deixei de enviar um "recado" ao realizador Fernando Vendrell através da produção: os Almendres só foram "identificados arqueologicamente" nos anos 60 como aqui referimos ) e apesar das "pedras talhas" já serem conhecidas dos habitantes locais, o seu aspecto seria completamente diferente nos anos 50, conforme mostram as suas primeiras fotografias. A produtora executiva com quem então falei e cujo nome não recordo (com a aposentação, perdi o acesso ao historial dos meus mails, um arquivo cuja falta já tenho sentido...), disse-me então que o Fernando Vendrell estava consciente dessa pequena "incongruência histórico-factual" mas que tinha "adorado" as qualidades cinéfilas do local e não resistia a utilizá-lo como cenário para um dos diálogos filosóficos em que o romance é fértil.

A cena em causa, cuja filmagem acompanhei depois em representação da DRCA e que já tive oportunidade de ver numa das salas do Cine Plaza de Évora, mostra um velho "carocha" da época, aproximando-se dum Cromeleque mergulhado na névoa matinal, criando um ambiente propício ao diálogo filosófico sobre o sentido da vida e da existência que acontece entre professor e aluno passeando entre os menires.

Nota final: Acresce a estas imagens dos Almendres várias cenas filmadas na Herdade da Mitra (Valverde), nomeadamente no Convento do Bom Jesus e no Pátio Matos Rosa, com a colaboração de figurantes locais e da União de Freguesias da Tourega e Guadalupe. Nos agradecimentos finais da ficha técnica, simpaticamente, é mencionada essa colaboração por parte da Junta de Freguesia.

Cena de a "APARIÇÃO"_ o carocha chegando aos Almendres. Hoje, felizmente, em condições normais tal já não é autorizado.

"APARIÇÃO"- professor e aluno falam sobre o sentido da vida e da existência tendo os menires como testemunhas silenciosas.

Outros "menires" (estes certamente réplicas de menires escoceses), inspirando outro tipo de histórias...

A novela "O Sábio", também com cenas filmadas nos Almendres mas neste caso sem qualquer conhecimento prévio da DRCA

domingo, 1 de abril de 2018


A GRUTA DO ESCOURAL E A ARQUEO-ACÚSTICA 
versão 0.2


Há cerca de 3 anos, correspondendo a um desafio do colega Fernando Coimbra, professor no Instituto Politécnico de Tomar, acompanhei com alguma curiosidade mas também algum cepticismo, Paolo Debertolis, um médico italiano, também arqueólogo "acústico", na busca de possíveis especiais efeitos sonoros ou, por outras palavras, de respostas acústicas diferenciadas, nalguns monumentos megalíticos de Guadalupe e também na Gruta do Escoural. ver breve referencia aqui 

Bruno Fazenda, preparando a emissão e gravação de mais um sinal sonoro no Escoural (coluna em primeiro plano). Um dos microfones está próximo do motivo rupestre, enquanto o outro, para comparação, está num local próximo mas sem qualquer vestígio rupestre.
Desde então não tive conhecimento de qualquer resultado das várias experiências e gravações sonoras efectuadas. Recentemente, o Fernando Coimbra contactou-me de novo. Esclarecida a ausência de resultados dos anteriores testes (segundo referiu uma mera experiência pontual sem mais consequencias, perante a reduzida experiência arqueológica do médico italiano) o Fernando, dado o seu crescente interesse nesta temática tão específica, por minha intermediação, julgando que eu ainda estava no activo, vinha propor à Direcção Regional de Cultura do Alentejo, a realização de novos testes agora centrados na Gruta do Escoural. Desta vez, porém, os testes seriam conduzidos por um jovem cientista português, Bruno Fazenda, investigador residente no Acoustics Research Centre, da School of Computing, Science and Engineering, Universidade de Salford, uma das principais instituições de investigação acústica a nível mundial e que coordenara recentemente um conjunto de testes acústicos em meia dezena de grutas rupestres do Norte de Espanha. Obtidas as autorizações necessárias junto da DRCA, os testes acústicos realizaram-se recentemente na Gruta do Escoural, sob a direcção de Bruno Fazenda e a colaboração do Fernando Coimbra, do André Pinto (jovem investigador em temáticas acústicas, formado na Universidade de Évora) e de Raquel Castro, doutorada em multimédia. A minha presença justificou-se essencialmente, para apoio à selecção e localização dos "motivos rupestres" (pinturas ou gravuras) cujo posicionamento no interior da cavidade, seria avaliada do ponto de vista da qualidade da respectiva "resposta acústica". 

Diga-se, entretanto, que sobre esta matéria da "arqueo-acústica", e salvo a curta experiencia prática já referida, pouco ou nada conhecia, nomeadamente no que respeita à sua aplicação à investigação de grutas rupestres. Foi portanto especialmente útil o acesso aos resultados dos testes em Espanha, publicados sob a direcção do próprio Bruno Fazenda no conceituado Journal of the Acoustic Society of America. Com efeito, apesar de há muito serem conhecidos instrumentos musicais (nomeadamente flautas e apitos em osso) descobertos em contextos paleolíticos e daí se depreender a existência de rituais pré-históricos propiciados através de actividades musicais ou sonoras, datam apenas dos anos 80 do século passado, os primeiros ensaios que de forma organizada e sistemática, ainda que com recursos técnicos limitados, procuravam provar a existência de uma relação entre as características das respostas acústicas e a localização dos motivos rupestres nalgumas grutas franceses. São especialmente conhecidos e citados os trabalhos de Iégor Reznikoff e Michel Dauvois em grutas como Le Portel, Niaux, Arcy-sur-Cure ou Isturitz, esta especialmente significativa pela descoberta de vestígios de instrumentos musicais. Apesar da forte convicção daqueles investigadores, as limitações técnicas e metodológicas não permitiram ir além do levantamento de hipóteses muito discutíveis. Tentando ultrapassar aquelas dificuldades, a equipa liderada por Bruno Fazenda e na qual participaram conhecidos arqueólogos, munida dos mais modernos recursos tecnológicos, procurou estabelecer uma metodologia que de forma objectiva e através de parâmetros mensuráveis, avaliasse a qualidade acústica dos locais escolhidos pelos paleolíticos para efectuarem os motivos rupestres. Centrando-se num pequeno conjunto de grutas rupestres do Norte de Espanha, nomeadamente El Castillo e Tito Bustillo entre outras, e analisados os respectivos resultados com recurso à estatística, o estudo permitiu chegar às seguintes conclusões: os motivos rupestres em geral e as linhas ou pontos, em particular, parecem estar localizados preferencialmente em sítios cuja reverberação é moderada e onde a resposta acústica às baixas frequências evidencia efeitos de ressonância. No entanto, conclui ainda o estudo, uma associação entre a localização dos motivos rupestres dentro da gruta com determinadas especificidades acústicas, é estatisticamente fraca ainda que suficiente para sustentar a hipótese de determinados efeitos sonoros e respectivas características terem influenciado o comportamento humano. 

Face ao alcance muito limitado destas conclusões, facto reconhecido pelo próprio Bruno Fazenda (actualmente envolvido numa ampla investigação acústica sobre Stonehenge), aquele estudo vale sobretudo pelo estabelecimento de uma metodologia rigorosa que passará a servir de padrão obrigatório em trabalhos futuros e que no Escoural, aquele investigador teve oportunidade de ensaiar de novo. Pessoalmente, no entanto, pese embora o reconhecimento quase intuitivo do certamente importante papel dos sons nas múltiplas facetas do dia a dia da humanidade pré-histórica, julgo que dificilmente, no caso de uma cavidade tão pequena como a do Escoural, as eventuais variáveis de qualidade acústica, poderiam ter influenciado a escolha da localização da centena de motivos pintados ou gravados ali identificados (mesmo partindo do princípio pouco provável que a sua grande maioria teria sido produzido pela mesma comunidade). De qualquer modo, os testes efectuados na Gruta do Escoural,  com sucessivas gravações digitais de sinais sonoros percorrendo toda uma escala dos mais graves aos mais agudos, uma vez analisados estatisticamente e devidamente publicados, passarão a ser, tanto quanto me é dado conhecer, uma estreia absoluta na arqueologia pré-histórica portuguesa. Mais uma a que esta Gruta ficará ligada.

Para eventuais interessados, aqui fica a nota bibliográfica que serviu de apoio a este post, mostrando que até nas disciplinas mais improváveis, os jovens investigadores portugueses, estão hoje a "dar cartas", ainda que, quase sempre como "imigrantes".

Cave acoustics in prehistory: Exploring the association of Palaeolithic visual motifs
and acoustic response. Bruno Fazenda, Chris Scarre, Rupert Till, Raquel Jiménez Pasalodos, Manuel Rojo Guerra, Cristina Tejedor, Roberto Ontañón Peredo, Aaron Watson, Simon Wyatt, Carlos García Benito, Helen Drinkall, and Frederick Foulds; The Journal of the Acoustical Society of America 142, 1332 (2017);



O equipamento básico para os testes acústicos: gravador digital e 2 microfones de alta perfomance, e a coluna para emissão do sinal sonoro


Breve briefing antes do início dos testes acústicos na Gruta do Escoural: a partir da esquerda, Bruno Fazenda, André Pinto, Raquel Castro e Fernando Coimbra